Sabe a falta de ar que precede o beijo de um amante? Quando se está de boca entreaberta esperando que o mundo se desfaça aos seus pés?
Sentia isso; estando a um passo do poder.
Também pudera, cresci na Terra-do-Já-Foi, o fim-do-meio-do-mundo; ou Torren, se você vem de fora. A cidade pequena, uma vila quase inescapável, onde o tempo dava voltas e o progresso fazia curva — por ali, nunca passava — Havia algo de podre na minha cidadezinha: assassinatos... brincadeira. Torren encheu seus cemitérios há um tempo — valas comuns a bem da verdade —, mas nada tinha haver com mãos humanas. Tecnicamente, o culpado nem tinha mãos.
Ainda assim, vila charmosa de se crescer. Onde uma criança podia olhar o sol sendo tragado pelo mar, e esquecer o deserto atrás de si. Onde as brigas são de família e as festas envolvem toda a comunidade. Uma cidade de gente pobre cercada de principados ricos. Um curral de trabalhadores dedicados onde o dia começa cedo e você provavelmente vai se casar com um primo. Você. Essa vida prosaica não é minha.
Sorvi o conteúdo da taça em um único gole. O vinho de tâmaras é demasiado doce.
Tinha as mãos frias e o olhar afiado de uma predadora. Reis, príncipes e magisteres circulavam no salão oval da Torre Labirinto, nem de longe tão bonitos quanto o dinheiro e as histórias faziam parecer. Mas nunca acreditei nas histórias, sabe. A vida guarda mais demônios que salvadores; e tudo bem, em algum momento, se aprende a conviver com eles.
Esqueça, não vou falar sobre os meus. Seria falar de mim. E ninguém aqui estava interessado na mulher alta e magrela, ou em como a mocinha de pele cinzenta e olhos grandes do outro lado do salão ganhou aquelas olheiras; ou quantas vezes o rapaz bonito conversando com a princesa socou as paredes até os nós do punho sangrar, porque havia fracassado... Rapaz bonito?
Meu aceno alertou o servo.
— Achei que a nova dignitária versada não tinha tempo para um servo mundano — provocou Nephir. O homem não tinha nada de comum em si. Pelo menos não para aquelas terras. O peculiar cabelo como fogo ficava esparso em sua cabeça, alto e forte, tinha a constituição de um guerreiro que dizia um dia ter sido. Indiquei o casal. — Também prefiro Nymor, ele é mais bonito do que um humano tem direito de ser. Mas por que escolher quando se pode ter os dois.
— Sou versada em herbalismo e artes ocultas, a princesa de Linden vai preferir alguém do comércio — afirmei. Aquele pensamento mordiscava, torcendo-se em minha mente.
Meu vestido verde era apertado, agora meu estômago estava roncando e o ar mal passava do peito. Mas tinha um segundo tipo de fome. Fome de viver, acho... e algo mais.
O servo ruivo riu. A tatuagem se mostrando tímida em seu pescoço, marca de sua servidão, talvez a única coisa comum nestas terras Mas eram os olhos azuis dele que não tinham par na ilha dos Labirintos de Pedra, do anil encontrado nos oceanos e em nenhum outro lugar. Porém, uma taça de vinho passando era mais profunda e poética no momento.
— Foca aqui! A princesa Lear de Linden acha Vanir muito velho e passivo. Solicitou a Neveah um novo Versado mor. Se desmaiar agora perde a cerimônia — censurou ele, me roubando o cálice de bronze. — A princesa de Linden não está interessada nas suas especialidades.
A expressão de asco em meu rosto dizia o bastante, pois Nephir devolveu a taça. Mas ele tinha razão, ela não estava preocupada que estudei enquanto outros dormiam, ou que lia 74 livros em um ano para ter a aprovação num único teste dos mestres. Ela não perguntaria quantos dos colegas do primeiro ano ainda estavam ali — doze, dos cento e sete. —; não ligaria nem mesmo quantos estavam vivos.
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Príncipe de Barro
FantasiPara compor exércitos, apetece guerreiros; para liderar, escolha símbolos; mas para governar, é preciso sábios. Para a Ordem Versada, o lema é "Servir", a maior pergunta de Vissenia era a quem. Isso ela pretende decidir, mesmo que signifique descart...