Capítulo I - O acaso

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Fic postada originalmente em  28/03/2019 no spirit. Espero que gostem!


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Kun não saberia dizer quantos anos tinha quando conheceu Ten. Não passava de uma criança quando o viu pela primeira vez em um dia ensolarado. Caminhava junto da sua mãe pelas ruas movimentadas e barulhentas de Sevilha, segurando firme na mão da progenitora. Kun tinha medo de se perder em meio a tantas pessoas diferentes. A senhora Qian tagarelava sobre as compras por onde passavam. A criança tinha pouco contato com outros da sua idade, passando a maior parte do tempo cercada por adultos.

Kun estava distraído, olhando algumas frutas que pareciam saborosas enquanto a sua mãe conversava avidamente com o vendedor, restava ao pequeno menino esperar. Ainda mantenho os olhos curiosos cercando todo o local, notou quando alguns burburinhos começaram e olhou curioso para o motivo daqueles sussurros. Foi quando o viu pela primeira vez, Ten estava no colo do seu pai. Kun viria a descobrir posteriormente que aquele homem era o líder. Logo atrás estavam dezenas de homens, mulheres e crianças, todos ciganos que chamavam a atenção pelas roupas coloridas e falatório alto. Ninguém entendia o dialeto próprio deles. Alguns tinham medo e outros tinham repulsa por conta do preconceito, porém nenhuma pessoa ousava se aproximar.

O menino sentiu a sua mãe aumentar o aperto na sua mão, o trazendo para mais perto com a intenção de protegê-lo se fosse necessário. Ela tinha medo, assim como a maioria. O grupo parou próximo a venda que estavam, fazendo com que a mulher prendesse a respiração. O líder se aproximou, fazendo o uso de um espanhol carregado de sotaque. Perguntou o valor de algumas frutas e as comprou, sequer parecendo incomodado com todos os olhares que atraiam. Todos observavam com atenção, pareciam esperar por alguma atitude rude ou algum show de horrores.

— Gracias — agradeceu com um sorriso no rosto e voltou para o seu grupo.

Kun pode ouvir a sua mãe soltar um suspiro de alívio quando os ciganos finalmente se afastaram, ainda sobre os olhares atentos e julgadores dos moradores da cidade.

— Quem eram, mamá? — O olhar demonstrava toda a sua curiosidade infantil.

— Eles são ciganos — respondeu com um tom sério. — Jamais se aproxime deles, querido.

(...)

A segunda vez que se encontraram, Kun estava correndo pelos campos que pertenciam a sua família. O menino detestava quando os seus pais começavam a brigar, trocando ofensas fervorosas e ignorando completamente a presença do filho que assistia a tudo assusto. Kun fugia de casa por algumas horas. Ele não entendia o porquê de tantos gritos ou o motivo de tantas lágrimas, porém sempre ficava com medo pela agressividade e hostilidade que tomava conta de todos.

Kun correu por minutos a fio sem rumo, parou de correr quando chegou próximo às árvores. Ele nunca passava dali, funcionava como um muro, mesmo não sendo realmente um. O menino tinha medo de se perder, mesmo que soubesse que não havia animais perigosos naquela região. Ele estava cansado quando sentou-se próximo a raiz de uma das árvores com o coração batendo rapidamente junto da respiração agitada. Fechou os olhos em busca de um pouco de paz para se acalmar, o silêncio funcionava como um calmante.

Ainda estava com os olhos fechados quando ouviu o som de folhas sendo amassadas. Abriu rapidamente os olhos, buscando pelo causador daquele barulho. Ten se aproximava com as suas características roupas coloridas de cigano. Kun lembrou-se das palavras da sua mãe lhe dizendo para ficar longe de ciganos, porém o garoto parecia tão inofensivo quanto o próprio. O olhar de ambos demonstrava a mais pura curiosidade infantil.

O cigano foi o primeiro a se aproximar com um sorriso bonito no rosto. Kun estava um pouco acanhado, mas não desviava o olhar, observando o menino que aparentava ter a sua idade com atenção.

— Hola, mi nombre es Ten! — O sotaque era forte e fofo.

— Me chamo Kun.

O Qian estendeu a sua mão, vendo o cigano estranhar, mas não recusou o seu toque. O clima foi um pouco estranho no começo, porém logo estavam correndo juntos por entre as árvores e brincando bastante. As risadas infantis preenchiam o lugar sempre tão vazio. Kun sentia-se feliz como a muito tempo não se lembrava; Eles subiam nas árvores, brincavam próximos ao córrego — sempre tomando cuidado para não se molharem — e repetiam que seriam melhores amigos para sempre. Ten tinha uma espécie de aura brilhante e contagiante.

— Vamos ser melhores amigos! — Kun gritava animado.

O pequeno cigano já havia convidado o Qian diversas vezes para conhecer a sua tenda, entretanto o garoto sempre se esquivava. Ten era sorridente e acolhedor, porém os outros ciganos que via pela cidade o assustavam. Talvez fosse pela reação exagerada das pessoas ou pelas conversas que escutava escondido dos seus pais. Kun gostaria de levar o seu único e melhor amigo até o casarão que vivia, mas sabia que não terminaria bem. Mesmo sendo pequeno, não sentia que era certo os comentários maldosos que todos faziam sobre pessoas como o Ten.

Aqueles encontros nas árvores duraram tempo o suficiente para perderem as contas. Ten sempre estava vestindo as suas roupas coloridas e típicas de cigano, enquanto Kun vestia as suas roupas feitas sob medida. Eles continuavam a rir juntos, a brincarem e partilharem segredos, mesmo que fizessem parte de mundos e culturas diferentes. Crianças não criavam as mesmas barreiras que os adultos cegos pelo preconceito. Um já fazia parte da vida do outro. Porém, os ciganos eram livres, não possuíam moradia fixa. Sevilha começava a ser uma cidade pequena demais para um povo de espírito tão desprendido de conceitos e costumes comuns.

Foi em um desses encontros que Ten contou que estaria indo embora no dia seguinte. O sotaque já não era tão carregado, os cabelos negros já estavam maiores e o rosto já não era tão infantil como antes. Eles se abraçaram por longos minutos enquanto estavam sentados no chão. O cigano deixou para trás o seu característico lendo preto que adornava a sua cabeça. Era uma promessa de que voltaria para buscá-lo um dia. Kun tinha a certeza de que esperaria o tempo que fosse necessário para ver aquele sorriso novamente.


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Sevilha é uma cidade espanhola situada a sudoeste da Península Ibérica, é a capital da Província de Sevilha e situa-se na Comunidade Autónoma da Andaluzia. E essa região é onde se encontra a maior concentração de Ciganos na Espanha.

Libertad Aunque Tardía [kunten]Onde histórias criam vida. Descubra agora