Capítulo 1 - Débora

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Dezenove anos... Meus pais tinham aproximadamente essa idade - talvez um pouco mais velhos -, quando nasci.
Meu pai era um homem como qualquer outro, de família, trabalhava de segunda a sexta, sábado passava o dia em casa e domingo de manhã ia para a igreja, para o resto do dia ficar com a família. Cheguei a acompanhá-lo algumas vezes nas missas do Padre Júlio, mas como minha mãe não era muito religiosa, permitia que eu ficasse em casa com ela quando quisesse. Falando nela, minha mãe era uma mulher solitária, mas poucas vezes ficava triste; gostava da vida sozinha, sempre fez tudo só, mal pedia minha ajuda nas tarefas de casa. Durante a semana, ela ouvia rádio enquanto lavava a louça, 14h em ponto ela começava e escutava seu programa favorito. Lembro que só tocava rock nacional, ela amava Capital, sabia todas as músicas... "Independência é a melhor música" Ela sempre me falava isso quando tocava, eu não entendia nada do que eles falavam, quando eu cantava junto simplesmente pegava palavras que combinavam para minha mãe não se sentir sozinha. Ela sorria mais quando eu estava junto.
Quando não era as tarefas de casa, minha mãe pintava. Eram quadros simples, muitas vezes ela os davam como presentes para os amigos. Retratos, paisagens, arte abstrata... O que viesse em mente, ela colocava no quadro. Eu amava ver ela pintando, achava aquilo incrível. Minha mãe era uma mulher incrível.
Em alguns dias, geralmente as quartas, minha avó Poliana nos visitava. Ela sempre chegava com algum doce ou uns 10 reais que eu gastava uma parte com cartinhas do Pokémon. Nós abríamos juntos aqueles pacotinhos, mesmo ela não entendendo nada de cada personagem. Quando não estava comigo, ficava conversando com a minha mãe.
A noite, por volta das sete horas, meu pai chegava do trabalho que não era tão longe de casa, mas como não tínhamos carro, o transporte público o deixava mais irritado. Quase não conversava, no máximo um "Boa noite, filho" às terças com algumas sacolas da feira que havia na rua debaixo.
Um dia, quando tinha meus oito, nove anos, minha mãe passou o dia inteiro pintando;  tinha me dito que era um quadro especial para uma pessoa especial e que eu não deveria entrar no quarto onde ela pintaria para não atrapalhar, algo como "distração que tira o foco artístico", só concordei, nunca que eu iria atrapalhar ela nisso. Nesse mesmo dia, a noite, meu pai chegou mais irritado que o normal do trabalho. Não me lembro muito bem o que aconteceu, somente que ele estava irritado, minha mãe tentou acalmar ele de alguma forma, porém,  só piorou. Como ela passou o dia pintando, meu pai percebeu que a casa estava um pouco bagunçada - mais do que o normal -, eu só lembro da minha mãe me trancando no meu quarto e ouvir a discussão dos dois. Até hoje tento acreditar que não passou disso, que foi somente um dia ruim...
Depois disso os dias e as noites mudaram, era discussão quase todas as noites que ele chegava, minha mãe parou de pintar, se dedicou muito mais as tarefas de casa e não ouvia mais seu programa favorito da rádio. Era como se toda aquela alegria e paixão que ela tinha, virasse um cinza, uma tristeza, algo sem graça. No dia do meu aniversário, que não demorou muito para chegar depois da primeira discussão, minha mãe me pediu desculpas por não ter me dado um presente, ela disse que gostaria de ter preparado algo incrível, mas que não deu certo e então ela só preparou um bolo, que meu pai jogou na minha mãe no meio de mais uma discussão. Eu nunca soube se ele chegou a bater nela alguma vez, mas minha avó começou a vir mais vezes pra casa, elas não deixavam eu ouvir a conversa, embora o pouco que eu conseguia, as duas choravam...
Quando completei meus dez anos, eu perdi minha mãe, meu pai foi preso e nunca mais eu o vi. Minha avó começou a me criar e dizia várias e várias vezes que eu deveria esquecer meu pai, hoje em dia eu nem lembro mais o seu nome, só de minha mãe... Débora.

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⏰ Última atualização: Apr 19, 2021 ⏰

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