Aquilo que é real

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    Ochako nunca engoliu papel, mas tem a sensação de que tem uma bola amassada presa em sua garganta cada vez que ela engole saliva. Não dói nem nada, mas é incômodo. A médica lhe examinou e pediu que ela fizesse sinais com as mãos para responder às perguntas dela, recomendando que não se esforçasse muito para falar naquele momento. A garota concordou e foi respondendo com acenos de cabeça. Sim, ela se lembrava de tudo. Não, não estava com dificuldade para respirar. Sim, a garganta estava raspando. A doutora concluiu que ela estava bem, só precisava descansar mesmo.

    Um enfermeiro veio checá-la e ligou a TV para ela, e Ochako não conteve um pequeno "oh!" de surpresa ao ver o Hawks e o Bakugou na TV. Não importa o quão normal aparecer no noticiário se torne em alguns anos, ela sempre se surpreende em ver pessoas conhecidas sob essa luz.

    A luz sob a qual o Bakugou se encontra, então, é particularmente mais surpreendente. Assim que se dá conta de que o assunto da entrevista coletiva dos dois heróis é ela, Ochako não consegue desgrudar os olhos da tela. Ver a si mesma sob as lentes das câmeras sempre causa uma certa estranheza, por vezes ela não se reconhece. Agora o mesmo efeito acomete o Bakugou, porque ele parece uma pessoa bem diferente, e nem é só porque está com a testa exposta, o que é uma imagem rara, é a expressão dele.

O garoto parece... exausto. Não que ele esteja acabado em frente às câmeras, mas tem uma certa profundidade nos olhos cor de rubi que Ochako não se lembra de ter visto antes. O Bakugou está sério, mas não carrancudo, não é nem mesmo uma expressão fechada, ele só parece mais... sóbrio. Com o Hawks ao fundo do vídeo, também com uma feição mais séria, porém aparentemente mais tranquila, seu colega de sala parece muito mais velho que o herói profissional.

É uma cena curiosa e fascinante, e ela poderia ficar observando-o e encontrando novos detalhes por muito tempo, mas então o Bakugou começa a falar. A voz áspera como sempre diz coisas que ela jamais esperava ouvir dele.

"Vou trabalhar todo dia pra ser um herói que não protege só vocês, mas outros heróis também, é o que ela acredita, é o que esse cara deve acreditar, e é no que eu preciso acreditar. Tem muita gente por aí com dificuldade de ver que a gente também é humano, então podem olhar bem pra minha cara se ainda tiver dúvida, porque eu tô aqui preocupado pra um caralho como qualquer pessoa que se importa estaria."

Ele parece tenso, mas não é nervosismo por estar diante da imprensa, dá pra perceber. Também não é constrangimento por ter dito o que disse, já que o garoto apresenta absoluta convicção em suas palavras. É o que se espera do Bakugou, autenticidade nunca faltou a ele, mas saber que é a ela a quem ele se refere nesse tom tão angustiado lhe traz uma sensação estranha. Um estranho bem bom, na verdade.

—  Viu? Seu amigo está te defendendo e tranquilizando os repórteres lá fora, mais um motivo para você se sentir melhor. —  o enfermeiro sorriu gentilmente —  Está com fome? A doutora disse que você podia comer gelatina ou sopa, o que prefere? —  Ochako sussurrou "gelatina", não gostando da dificuldade que sentiu em proferir a palavra —  Tudo bem, já vou buscar.

Ela continuou assistindo à coletiva, agora observando o Hawks dar alguns breves detalhes sobre o caso. Ele não deve poder falar muito, já que por enquanto está tudo sob investigação na polícia, mas é função do herói acalmar a todos e garantir que isso foi um problema isolado, não é um indicativo de insurgências terroristas nem nada disso. É o que o Hawks faz, pegando-a também de surpresa ao mencionar algumas das coisas que o responsável pelos incidentes com o trem disse sobre o porquê de ter feito o que fez. 

—  A marginalização de pessoas não é só social, é geográfica também. Há muito mais oportunidades e recursos para quem mora em metrópoles e grandes centros. Eu sei bem disso porque nasci no subúrbio de Fukuoka, só fui ouvir falar de heróis quando tinha uns 7, 8 anos, e a polícia não passava confiança, dava medo, na verdade. Não tô aqui defendendo o responsável por esses incidentes, mas eu queria que vocês entendessem e levassem isso em consideração quando forem abordar essa história, é muito mais complicado do que mocinho prendendo vilão, pessoal.

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