AS CRÔNICAS DO SONO – Carlos Antonholi
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Antonholi, Carlos
Audri e as Crônicas do Sono / Carlos Antonholi – São Paulo:
Rio Azul Edições, 2018
1.Fantasia 2. Literatura Brasileira 3. Ficção
Primeira Edição, 2018PRÓLOGO
“...então os deuses do Olimpo resolveram despertar em pleno
século XXI. Morfeu descansava próximo à ilha de
Gunkanshima quando um tsunami atingiu o Japão. A ilha
japonesa, cujo nome em português ficaria algo perto da
palavra “encouraçado”, não deixava dúvidas: tinha mesmo o
formato de uma embarcação. Durante a Segunda Guerra
Mundial, foi alvo de um bombardeio americano. As ruas e as
construções estavam completamente desertas. E havia sido
assim desde 1974, quando em 1890 uma grande empresa
assumiu a propriedade da ilha, decidiu acompanhar as
tendências do setor energético e pôs fim às explorações das
jazidas de carvão mineral no local. Com isso, os cerca de dois
mil habitantes que ocupavam o lugar resolveram abandoná-lo,
dando origem a uma cidade-fantasma. O governo japonês
queria transformar a ilha em um polo de turismo, mas somente
a fúria dos deuses acabaria com os planos do imperador e
faria com que aquela porção de terra no meio do mar
desaparecesse de vez no mapa. Naquele dia, Poseidon
levantou-se na forma de um redemoinho das profundezasnaquelas águas oceânicas e logo avançou sobre Morfeu, que
ali dormia tranquilamente. Precisava cobrar o resgate da
relíquia prometida pelo sobrinho para amenizar a dor de
Anfitrite. A paciente e tolerante esposa sofria há tempos com a
rebeldia dos mortais que insistiam em derramar os dejetos de
seus cargueiros e subtrair recursos de seu habitat para atrair
riquezas, apenas.
Poseidon almejava um derradeiro pedaço de tecido, relíquia
que restara dos lençóis mágicos de Morfeu. Seus descendentes
conseguiam dormir e recuperar as forças apenas quando eram
cobertos por aqueles mantos durante o sono. O desejo – mais
que a necessidade - de Anfitrite era descansar sob um deles.
Acreditava que o simples contato com o tecido a faria
recuperar sua vitalidade.
Morfeu recebera a notícia de que um bando formado por
operários ingleses em visita às ilhas da Grécia havia
encontrado a relíquia e levado com eles. Mas não tinha o
paradeiro exato do objeto. Disse a Poseidon que o encontraria
a qualquer custo e prometeu entregar esta parte do manto o
mais rápido possível, antes que o tio entrasse novamente em
fúria e desta vez inundasse os continentes como no tempo da Pangeia há mais ou menos quinhentos e quarenta milhões de
anos. Naquela época sua fúria fez com que deslocasse o
subsolo oceânico de basalto para vencer, ao lado do soberano
irmão Zeus, a luta travada contra os Titãs e os Gigantes, o que
resultou na morte de Polibotes ao ser atravessado pelo pedaço
de falésia arrancado por Poseidon da ilha de Cós. Houve, na
ocasião, a formação dos continentes como são conhecidos nos
dias de hoje. Porém, toda vez que Poseidon fica irritado,
promete entrar em fúria e inundar para sempre parte destes
continentes com as lágrimas da magoada Anfitrite. Um plano
perfeito para dizimar parte da humanidade e firmar a velha
apatia que tem com aqueles que o aborrecem e também à
esposa, paulatinamente, em sua falsa sensação de poder.
Assim que a ordem foi dada, perante Morfeu e Anfitrite, a
forma de Poseidon fundiu-se às águas e ele desapareceu.
Morfeu revelou então as enormes asas de borboleta que
escondia nas costas e deu, após sentir-se atordoado, sete
voltas em torno de Gaia antes de fixar-se novamente, desta vez
em outra parte do globo. Como tinha herdado o raro dom da
mutação, resolveu assumir a forma humana em proporções
maiores que as de costume para lhe fosse conferido um status de poder sobre os homens comuns e certo clima de pânico e
terror.”
Foi esta a primeira história que ouvi de meu pai quando ele foi
convidado a dar uma palestra sobre Mitologia Grega para os
alunos do curso de Artes na universidade. Convidou-me a ir
com ele, pois mamãe naquela ocasião acabara de passar por
uma cirurgia corriqueira e precisava descansar um pouco. Meu
irmão não havia nascido ainda. Papai costumava criar histórias
que envolviam os deuses gregos. Histórias ilustrativas para que
seus ouvintes entendessem sua função na mitologia ou apenas a
fim de exemplificar assuntos que eram difíceis de explicar de
forma concreta. Como ele, passei a ficar bastante interessada
pelo tema desde então. Inúmeros foram os livros que li e as
histórias que criei para entreter os colegas na escola. Papai
também gostava de ouvi-las durante as confraternizações em
família. Dizia que eu seria escritora ou professora como ele.
Ficava sempre orgulhoso, mas uma história que eu costumava
contar ultimamente, depois que o doutor me deu alta, não era
mais uma daquelas criadas pela minha fértil imaginação, como
diziam por aí. Era algo que realmente havia sucedido e eu
queria que fosse compreendida mais cedo ou mais tarde por aqueles que a conheceram e vivenciaram comigo. Missão
quase impossível. Na verdade, acho que ainda nem eu pude
assimilar direito o que aconteceu. Não tive tempo hábil para
isso. Ou melhor, às vezes nem tenho certeza se aconteceu
mesmo. E é para compreender tudo isso que conto e reconto,
sempre que possível, a mesma versão aos amigos e ao pessoal
da família. Mas, quer saber a verdade? Esta não é apenas uma
história de deuses e semideuses como aparenta ser. É a minha
história e a história de como as coisas que acontecem nem
sempre são como imaginamos.
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AS CRÔNICAS DO SONO
Fiksi RemajaAudri precisa viajar pelos próprios sonhos para ajustar as contas com seus antepassados.