ATO II - LUPA

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"Como será que ele está?", pensei, à medida que o elevador subia.

Fazia meses que não via o Vitor. Da última vez que nos encontramos, ele estava muito triste, com nenhum dos seus projetos dando certo. Toda queda que ele tinha o deixava mais e mais frustrado. Todas as falhas acabaram sugando suas energias. Tal hora deixou de andar bem vestido, de tirar fotos sorrindo. Às vezes achava que ele esquecia de tomar banho, ou só não se importava. Tinha ficado alheio à própria vida, e era muito difícil vê-lo assim.

Não trocávamos muitas mensagens. Nem eu, nem ele, gostávamos de ficar muito tempo em redes sociais. Até poucos dias não tínhamos notícia um do outro, até que resolvi chamá-lo e houve esse convite dele de vir assistir um filme.

Eu tinha receio de ver como estava meu amigo. As portas do elevador abriram e eu andei lentamente pelo corredor até o apartamento dele. Respirei fundo antes de tocar a campainha.

Deus queira que ele esteja bem...

"LUAN!", gritou Vitor, assim que me viu à porta, surpreso, como se o porteiro não tivesse interfonado para dizer que eu tinha chegado. "Que saudade!", ele me abraçou (coisa que odeio), mais forte do que o normal. Eu ri, desconcertando, dando uns tapinhas nas costas dele".

"Também estava com saudades, Vitor. Agora me solta". Ele riu, finalmente me largando, e pude olhar como ele estava fisicamente.

O cabelo estava maior do que da última vez que nos vimos, mas dava pra notar que ele tinha penteado antes que eu chegasse. A roupa estava bem arrumada, combinando uma com a outra (o que ele não costumava fazer mais), e tinha usado um perfume adocicado. Isso era novidade, porque Vitor odiava perfume.

E sorria.

Fazia tempos que não via o sorriso do Vitor.

Era quase igual ao das fotos. Mas havia algo... Fora do lugar. Exagerado demais.

"Cadê, escolheu o filme?", ele perguntou, me tirando dos devaneios.

"Sim. Baixei um de terror que acabou de sair a legenda."

"Ótimo! Vou fazer pipoca!"

Ele foi até a cozinha, eu o seguindo logo atrás. Vitor fazia um estardalhaço incômodo para pegar as coisas, enquanto falava um monte de aleatoriedades. Ele sempre foi meio estabanado, mas eu estava desacostumado.

Mais uma vez. Exagerado demais.

"Como estão as coisas?", perguntei, tentando tirar um pouco o foco dele dos armários para ver se o barulho diminuía e a gente tinha uma conversa decente.

"Ah, na mesma", Vitor respondeu, "sem emprego, sem diploma, sem contatinhos... Tudo a mesma bosta de sempre", ele riu, enquanto colocava o milho na panela. "E você?"

Vitor tinha perdido o emprego fazia pouco mais de um ano, e desde então passou por várias entrevistas frustradas. Esse foi o começo da depressão dele. Depois veio o namoro que acabou de forma abrupta, com várias mentiras sendo descobertas. E isso o abalou tanto que não conseguia mais focar no curso. Tinha trancado o curso de Arquitetura pouco antes de iniciar o TCC. Sem aviso. Lembro de apenas acordar e ver a mensagem dele dizendo que tinha decidido trancar por um tempo. Íamos nos formar juntos. Aquilo foi meio que um baque pra mim, porque tínhamos conversado várias vezes em como comemoraríamos a colação de grau. E, no dia, ele apenas estava lá, de corpo presente, mas com a mente em qualquer outro lugar. Apenas uma concha vazia.

"Luan?", ouvi ele falando. Não tinha notado que tinha ficado calado durante tanto tempo, sem responder. "Dormiu?"

"Não, só tava reflexivo".

"E depois eu que vivo desligado", ele disse.

Ali estava o humor passivo-agressivo que eu estava acostumado, jogando minhas falas antigas contra mim. Isso me fez sorrir um pouco. Um pouco de familiaridade, afinal.

Falei do novo emprego, do namoro que estava indo muito bem, finalmente, e da ideia que tive pro mestrado. Ele perguntou um pouco mais sobre tudo. Vitor sempre queria saber tudo nos mínimos detalhes. Falei por um bom tempo, mesmo depois de a pipoca ficar pronta. A gente riu de muita coisa, e nos irritamos com muitas outras coisas, até lembrarmos do filme por assistir.

"Posso só usar o banheiro antes?", perguntei. Ele disse que sim, e fui em direção ao cômodo.

Era o mesmo Vitor. As piadas eram a mesma. A conexão era a mesma. A personalidade era a mesma. Mas algo não encaixava. Parecia que ele estava tentando demais ficar de bom humor, e isso era estranho.

Dei descarga e me virei pro espelho. Tinha uma toalha de rosto em frente a ele, tapando tudo. Vitor tinha umas manias estranhas, mas aquela era nova. Talvez tenha visto esse jeito de organizar o banheiro no Pinterest.

Minha mania de organização falou mais alto e coloquei a toalhinha no lugar certo, rindo da situação. Lavei as mãos e parei pra ajeitar os cabelos.

Aquele espelho era estranho. Eu nunca tinha me acostumado com ele. Era pequeno, só dava pra ver o rosto e parte dos ombros, e a imagem parecia distorcida. Sempre sentia que minhas proporções estavam erradas.

Fiquei um tempo me olhando ali, ainda pensando nas estranhezas do Vitor. No exagero.

Talvez ele estivesse fingindo. E não estivesse bem. Talvez precisasse de ajuda. Eu devia falar com a mãe dele, mandar mensagem pra ela dizendo pra ela ver algum psicólogo pra ele.

Ou...

Talvez eu estivesse exagerando.

Eu não o via há muito tempo. Talvez eu quisesse de volta um Vitor que eu estava acostumado, mas que não existia mais. E fazia sentido não existir, especialmente depois de tudo que ele tinha passado. Talvez tenha sido a forma que ele encontrou pra se reencontrar, e eu, como amigo, tinha que aceitar, respeitar e apoiar.

Talvez meu amigo estivesse ali agora, e eu criando teorias estúpidas por conta de uma pessoa que tinha ficado no passado, e que agora era só uma lembrança.

Olhei mais uma vez para o reflexo distorcido.

"Anda logo, que eu tenho que voltar cedo pra casa!", disse, quando voltei para a sala. Ele abriu um sorriso pra mim.

Sorri de volta.

A tarde seguiu da forma mais agradável do mundo. Fazia tempo que não me sentia bem. Fazia tempo que não me sentia bem com o Vitor.

Era muito bom estar com ele.

"Tenta não demorar tanto pra vir de novo", ele disse, abrindo a porta no fim da tarde para que eu pudesse ir embora.

"Ei, você também tem que ir lá em casa, minha mãe fica sempre perguntando pelo Vitinho", falei, e ele riu. "E a Flávia também quer ver você, faz tempo que não saímos juntos."

"Ai, então vamos marcar! E olha...", ele disse, e me abraçou. "Muito obrigado pela tarde. Eu tava precisando disso!"

Eu não sabia o que falar. Senti o abraço mais forte que o normal outra vez.

Talvez não precisasse de palavras.

Apenas o abracei forte de volta.

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