Observo o céu de Cursien. Nossos três sóis estão nascendo. Calor e aridez sendo despejados pouco a pouco como ondas entediadas e persistentes, banhando as areias escuras e avermelhadas.
É uma visão estupenda, extenuante e um pouco desesperadora.
Às vezes, gosto de deixar as cidades para trás — com sua água artificial, seus pulmões secos e seus habitantes fervilhantes — e vir contemplar os céus e as areias de Asfynraer, os grandes desertos que engoliram nosso mundo. A boca de todas as chamas. A língua de fogo que varreu Cursien.
Muitos criam que Asfynraer era algo vivo, ao mesmo tempo muitos e um só. Alguns chegavam a adorá-lo como um deus ou guardião. Outros diziam que era uma punição vinda do coração de nossos próprios pecados.
Eu não sei se existe alguma verdade nessas crenças, mas, sei o que sinto ao olhar para Asfynraer. Suas areias se estendem até onde meus olhos podem ver, iluminando-se e fervendo lentamente, misturando-se no horizonte com o céu negro, vermelho e amarelo.
Do lado oposto de onde os sóis nascem, quase tocando o horizonte, consigo ver a constante mancha azul, como uma laceração gigantesca na pele fosca e ardente do céu de Cursien.
Comtemplo tudo isso e sinto, só durante esse momento, que sou parte de algo maior. Que todos nós somos.
Nosso gigantesco mundo quente, seco e escaldante. Nossa casa. Nossa prisão.
Tão diferente dos outros mundos...
Bom, não que eu já tenha estado em algum deles. Nunca havia saído de Cursien.
Mas, eu ouvia histórias.
Mundos irmãos, interligados, conectados como um único corpo. Belezas inimagináveis e tão diversas que não poderiam ser contadas. Fontes das quais jorravam-se águas puras e inesgotáveis. Estrelas que contavam segredos sobre o futuro e sobre tudo o que existe. Campos intermináveis de plantas multicores, que possuíam o poder de curar qualquer doença, ferida ou mal. Seres imortais tão belos e imaculados, que não poderíamos olhar para eles face a face. Lugares nos quais os habitantes não conheciam a miséria, os monstros, a dor, a fome, a guerra e até mesmo a morte, pois eram constantemente protegidos por uma raça extremamente poderosa, a qual jamais poderia ser derrotada e que não se podia conhecer nem o nome.
E principalmente, mundos onde a magia não só existia, como era algo tão comum e pulsante como as águas.Mundos que tinham com fartura gigantesca o que para nós era apenas lenda e dor. Mundos que eram como o nosso já foi um dia.
Em Cursien não sabemos se essas histórias são verdadeiras. Não sabemos se, mesmo sendo verdadeiras, podemos alcançar esses mundos. Não sabemos nada além de mitos, canções e crenças sobre O Grande Deserto, sobre outros mundos, sobre o passado.
Mas, uma coisa todos nós sabíamos. Asfynraer foi trazido por eles.
A assolação, a praga de Cursien, a nossa maldição. Os monstros de fogo que secaram as águas e feriram a magia até que deixasse de existir. Aqueles sem nome. A sombra. A escuridão.
Aqueles a quem eu caço.
Aqueles a quem eu mato.
(507 palavras)
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Assassina da escuridão
FantasíaEm um mundo devastado pela guerra, a magia foi quebrada a ponto de quase ser aniquilada e a água, algo considerado comum, tornou-se inexistente. Entre as areias escaldantes, construções titânicas e desolação, sobrevivem raças diversas, cada uma sobr...