CAPÍTULO DOIS

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YOHANESS

A voz de Anuar ao chegar a casa me despertou do profundo sono que dominava
que meu corpo por completo. Ouvi passos se aproximarem da entrada do quarto.
Anuar entrou e se sentou de frente a minha cama.
– Os teus ferimentos como estão? – Perguntou Anuar.
– Melhores. Você vai gritar comigo não vai? – Me levantei e sentei na cama.
– Era suposto, mas estou tão cansado que perdi a vontade.
– Como foi lá no reino Congo?
– Correu tudo bem, fomos ver quantos de seus jovens vão participar do ritual.
– Eu posso participar e representar o nosso povo lá.
– Sabes que apenas pessoas com dezoito anos podem participar, para além disso
nem que tivesses dezoito eu não te deixaria participar.
– Por que? Só quem passa pelo ritual pode se tornar um iniciado, eu quero ser
uma iniciada que nem você e o pai foram.
– Pára Yohaness! – Repreendeu com o tom de voz fora do que parecia ser mais
agradável.
– Por que?
– Você não faz ideia do que acontece no ritual, você não faz ideia do que temos
que passar para nos tornarmos iniciados e eu passei por aquilo, não vou deixar
você passar pelo mesmo.
– Se eu não passar pelo ritual não tem como eu ser uma iniciada, os iniciados se
tornam os líderes das guardas dos reis. És o único iniciado do nosso reino, cada
reino tem um iniciado e como bem sabes no nosso reino todos iniciados foram da nossa família. Eu tenho que passar pelo ritual e me tronar iniciada para
futuramente ser a protetora do rei.
– Já chega! – Gritou. – Eu já decidi.
– E o que o rei acha da tua decisão? Você quer destruir uma tradição antiga.
– O rei não obriga ninguém a participar do ritual, todos os jovens que pretendem
ser o próximo protetor do rei se inscrevem e passam por vontade própria.
– Então por que eu não posso passar quando fizer dezoito?
– Por causa Do que acontece lá, eu já disse.
– Você não disse o que acontece no ritual até agora, aliás. Nunca ninguém diz.
– Porque somos proibidos de dizer por força das leis Bantus. Vamos mudar de
assunto!
– Que chato!
– Eu deixo vocês sozinhos por apenas um minuto e começam logo a discutir! –
Disse Ísis ao passar para dentro do quarto. Sentou na cama ao meu lado e começou
a desmanchar as minhas tranças como ela faz quase todas as noites.
– Foi ela que começou com essa chatice de ritual. – Disse Anuar.
– Até parece. – Retruquei. Ísis sorriu, meu cabelo todo estava solto e cheio como é
por natureza. Crespo e duro.
– Quando forem para tcheunda tcha Nzambi, também irão discutir assim? –
Perguntou Ísis, ela se referia a aldeia de Deus Tcheunda Tcha Nzambi também
conhecida como Céu.
– Isso depende em qual dos nove céus ele vai. – Respondi.
– Nove céus? – Perguntou Ísis.
– Não liga pra ela, nossa mãe contava lendas para Yohaness antes de dormir e ela
ficou com essas lendas presas no pensamento até hoje. – Disse Anuar.
– Não são lendas, é real. – Falei.
Odeio quando ele duvida do ensinamento que nossa mãe passava. Ela era uma
mulher especial, ela me contava coisas que mais nenhum Bantu tinha domínio,
independente do reino a que ele pertencia. Minha mãe não acreditava nem na
história do surgimento do mundo, ela me dizia que ela está mal contada.
– Não precisam brigar. – Disse Ísis simpática. – Eu quero saber sobre os nove
céus. – Soltei um sorriso. Eu amava falar sobre as lendas de Nzambi, só não tinha
muitas pessoas para me ouvirem.
– Segundo a lenda, depois do mau se espalhar pelo mundo um grupo de humanos
se reuniu e invocou Nzambi pedindo ajuda, Nzambi se manifestou e atribuiu
poderes a estes humanos transformando-os nos Nkisis as terceiras divindades. Eles
ficaram os responsáveis por guardar todas as tribos Bantus, por isso cada tribo é
guardada por um Nkisi assim como os Ovimbundos são protegidos por Nguzu o
Nkisi das florestas, os Ambundu por Ntoto o senhor do chão, os hereros por Nvulu
o Nkisi dos ventos, os albus por Kalunga a rainha do mar, os Xhona por Kafunge
Nkisi da cura, os Sotho por Ndamdaluanda Nkisi dos rios, os Botchuana e os
Tongos por Kaiangu Nkisi das tempestades. Por fim, depois disso. Nzambi
retornou a Tchuanda Tcha Nzambi a sua aldeia, o famoso céu e dividiu ele em
nove partes.
– Por que Nzambi dividiu o céu em nove partes, ainda não consegui entender? –
Perguntou Ísis curiosa.
– Para que cada Bantu depois de sua morte, ter seu espirito levado para um destes
céus de acordo aos seus feitos enquanto homem. Sendo assim, ele chamou o
primeiro céu de Alàáfià: Espaço de muita paz e tranquilidade, reservado para
pessoas de génio brando, ou índole pacífica, bondosa, pacata. O segundo chamou
de Funfun: Reservado para os inocentes, sinceros, que tenham pureza de
sentimento e pureza de intenções. O terceiro de Bàbá Eni: Reservado para os
grandes sacerdotes e sacerdotisas. O quarto de Aféfé: Local de oportunidades e
correção para os espíritos, possibilidades de reencarnação, Para os que ainda têm feitos a cumprir na terra. O quinto chamou de Àsàlú: Local de julgamento por
Nzambi para decidir qual dos respectivos céus o espírito será dirigido. O sexto
chamou de Àpáàdì: Reservado para os espíritos impossíveis de ser reparados. O
sétimo chamou de Rere: Espaço reservado para aqueles que foram bons durante a
vida. O oitavo Burúkú: Espaço ruim, ibonan "quente como fogo", reservado para
as pessoas más. E por fim o nono céu chamou de Mare: Espaço para aqueles que
permanecem, tem autoridade absoluta sobre tudo o que há no céu e na terra e são
incomparáveis e absolutamente perfeitos, os supremos em qualidades e feitos.
– Uau! – Sorriu Ísis. – É uma pena que essa lenda não é muito contada pelas
terras bantus.
– Agora você também acredita nelas? – Disse Anuar enquanto se ria.
– A vossa mãe deve ter sido uma mulher incrível. – Disse Ísis.
– Anuar lembra mais dela do que eu.
– Ela chamava Yohaness de passarinha. – Disse Anuar.
– Eu odiava este nome! Quem chama uma pessoa de passarinha?
– Eu acho passarinha um nome lindo, são pequenas, mas quando crescem abrem
as asas para o mundo. Talvez seja isto que ela pensava sobre você no futuro, que
voarias livre como o vento. – Ísis se levantou depois de falar, sorriu para nós e saiu
do quarto.
– Mano! – Gritei com um sorriso espantado no rosto logo de início.
– Não! Não! Eu conheço bem esse sorriso. – Ele já sabia o que eu pediria em
seguida.
– Por favor! Me deixa ver você a praticar magia, eu nunca mais vi.
– Está tarde.
– Por isso mesmo! Nós vamos até a floresta e praticamos sem ninguém ver.
– Está bem, mas só hoje!
– Combinado.
Saímos do reino e fomos para floresta que ficava do lado de fora. Apenas os dois,
estava frio e a lua iluminava ela como se fosse o centro das atenções na terra.
Várias arvores rodeavam nossa existência física. Anuar parou de andar quando
chegamos no centro da floresta.
– Você está pronta? – Perguntou ele.
– Sim! – Respondi animada, pois já sabia o que vinha a seguir. Meu irmão era o
único iniciado do reino Ovimbundu e apenas ele podia praticar magia. Eu tinha o
privilégio de ver isso de perto algumas vezes, coisa que muitos habitantes do reino
jamais sonharam em ver.
– O mundo é feito de vibrações. – Disse Anuar depois de esfregar suas mãos uma
na outra. – Cada vibração corresponde a um Nkisi. Os Nkisis trabalham sobre a
autoridade de Nzambi, Nzambi está em tudo, está no ar, no mar, nos rios, na
chuva, na terra e... – Colocou a palma da mão direita sobre o tronco de uma arvore.
– Na selva!
Seu sinal no olho esquerdo começou a ganhar vida, com um brilho esverdeado
sobre ele. Mas não apenas o sinal em seu olho esquerdo, a arvore em que ele tocava
também.
– Nkuvu! – Disse Anuar em sussurros. – Senhor das florestas. Que seu poder flua
sobre mim!
A arvore começou a se mover, os galhos ganharam vida e rodearam meu corpo por
completo, vi uma outra arvore ganhar vida e se mover no meu lado esquerdo, outra
no direito, outra atrás de mim e por fim vi toda floresta ganhar vida. Meus olhos
brilhavam mais que o sinal no olho de Anuar. Eu estava totalmente encantada com
aquilo, eu queria poder dominar a floresta desta forma. Era surreal e único.
– Como você sabe quando a magia vai fluir? – Perguntei ainda encantada com a
floresta viva a minha volta.
– Quando você passa pelo ritual e se torna um iniciado, você não treina. A coisa
apenas acontece, o Nkisi fica ligado a ti. E se comunica com você. – Anuar viu o
encanto em meu rosto e de repente seu tom bem-humorado mudou. Talvez seja
porque finalmente notou que aquilo me estava a encantar demais e aumentaria
minha sede de participar no ritual, fechou o punho e a floresta voltou ao seu estado
estático.
– Logo agora que eu estava a viajar em mim mesma?
– Precisamos voltar pra casa, isso foi um erro.
– O quê?!
– Vamos logo!
Não voltei a reclamar pois seria inútil, então, decidi me retirar junto dele rumo ao
interior do Reino Ovimbundu.

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