Encerrei a conversa animada com a supervisora Daniele assim que terminei de jantar. Eu tinha duas papeladas de adoção para revisar. Despedi-me e me levantei, dando meus passos concentrados em direção à diretoria. No entanto, assim que subia os dois degraus saindo do refeitório, avistei duas pessoas tentando se esconder furtivamente por trás de uma pilastra.
Caminhei rápido até lá e de primeiro instante levei um susto ao ver aquele moleque que pensei ter perdido para sempre; Guilherme Soares. E não estava só, carregava pela mão o pequeno orfãozinho Ravi Bahadur.
Os dois me viram um segundo depois e seus olhares foram de puro pavor. Demorei apenas poucos instantes para me aproximar mais e proferir:
— Ora, ora, que surpresa. – cruzei os braços, sentindo meu peito pulsando por baixo deles. — O que faz por aqui, Guilherme?
— Di-Diretora...?
— E o mais importante; o que faz carregando o Ravi?
O menor tentou responder:
— Ele só...
— E o que tem nessa mochila, querido? – os dois ainda me encaravam sem nem saber como reagir. Foram pegos completamente de surpresa. — O que vocês acham que vão fazer?
— Gui veio me tirar daqui e me levar embora, sua cobra! – o indiano quase gritou. Certamente percebeu que não ia adiantar nada mentir para mim.
Guilherme olhou ao redor, certamente com medo de chegar seguranças.
— Ah, é? – descruzei os braços e juntei as mãos na frente do corpo, expressando uma falsa surpresa. — Que burrice dele, não acha? – recebendo uma língua malcriada de Ravi, desviei a atenção para Guilherme — Achava que ia entrar aqui, como um super-herói, e sair sem ser pego, Guilherme? Sonhar com um conto de fadas é burrice ou não é?
— Burra é você — o pequeno insolente falou de novo, fazendo com que meus olhos mirassem ele mais uma vez — O que é que conto de fadas tem a ver com super-herói, maluca?
Que moleque de uma língua afiada! Meus olhos ainda captaram o quase sorriso de Guilherme. E aquilo me irritou.
— Cala a boca, Ravi! E pode esquecer essa fuguinha idiota. Acabou o sonho, seus arruaceiros! Venham comigo agora. – quando tentei alcançar o braço do Ravi, Guilherme o puxou para trás de si e me encarou furioso.
— Não toca nele! Você não vai nos ver nunca mais, sua bruxa. Corre, Ravi! — e puxando o menino junto, se pôs a correr, indo em direção ao depósito.
— Volta aqui, suas pestes! – mesmo sobre os saltos alto, corri atrás deles. — Seguranças! Corram aqui!
Os meninos correram tão rápido que em pouco tempo já tinham sumido no corredor. Entretanto, consegui alcançá-los de novo e os vi driblando um segurança que estava no depósito de entrega. Um caminhão estava parado perto do enorme portão de saída, caixas grandes e pequenas estavam espalhadas por todo o salão aceso.
Guilherme não soltou a mão de Ravi a nenhum momento enquanto se livravam das mãos do segurança e passavam derrubando caixas, tentando alcançar o portão. Eles estavam tão perto e aquilo estava me enfurecendo. Corri até eles e, superando as habilidades do imprestável que trabalhava para a segurança, consegui agarrar a mochila do menino. Ele gritou. E Guilherme gritou de volta. Pareciam apavorados.
— Larga ele, Lívia! – Guilherme me ordenou, demonstrando na voz a fúria que ele sempre dirigiu a mim.
Com raiva, puxei mais forte a mochila e o menino foi obrigado a soltar a mão de Guilherme.
— Não! Ravi!
— Vai embora, Gui! – o menino gritou ligeiro, parecia prestes a chorar. — Corre, não deixa eles te pegarem também!
— Ravi... — ele falou se afastando, parecendo que já estava chorando.
— Vai! Eu vou ficar bem.
O segurança chegou até nós, mas não rápido o suficiente para pegar o menino mais velho, que saiu correndo pela abertura do portão.
— Vai atrás dele, seu imprestável! – e ele foi. Mas eu tinha a certeza que não iriam pegá-lo como da outra vez.
Olhei em chamas para Ravi. Já que não podia descontar meu ódio em quem queria de verdade, ele seria útil para mim.
— Seu moleque fedorento! – ele me encarou de volta. Enfrentando, sem medo. — Você agora vai ter o castigo que merece por ter tentado fugir com aquele pentelho.
— Faça o que quiser, sua bruxa. Daqui uns dias eu não vou está mais por aqui mesmo para ver essa sua cara feia.
— Moleque... Eu devia fazer de tudo para você não ser mais adotado, só para poder descontar em você toda a raiva que você e o Guilherme já me fizeram passar. – foi com essa frase que eu vi o olhar firme dele vacilar. Eu sorri, satisfeita. Finalmente provoquei medo nele. — Vamos, pentelho! Você agora vai limpar banheiros no lugar do Guilherme.
Puxei ele pelo braço e ele me acompanhou aos solavancos.
Joguei-o no banheiro e o deixei lá com água, sabão e panos, pegando sua mochila e me dirigindo logo em seguida para o quarto dele. Sacudi aquele peso na cama e segui para o quarto do Jorge. Eu tinha uma ideia e precisava conversar com ele.
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— Eu quero você nas ruas, Jorge. — o rapaz que mais odiava Guilherme, tanto quanto eu, estava sentado à minha mesa, enquanto eu estava de pé por trás dele, segurando em seus ombros.
Jorge disse:
— De novo, Lívia? Você disse que não queria mais saber do Guilherme, que estava satisfeita com ele bem longe daqui.
Eu já tinha feito o Jorge sair pelas ruas — às escondidas de todos, senão pegaria mal para mim —, em busca daquele filho da mãe. Infelizmente, ele não tinha nem chegado perto de encontrá-lo. Só que agora eu tinha mais esperanças de pegar aquele fujão. Conhecendo Guilherme como eu conhecia, sabia de certeza que ele não desistiria de pegar o Ravi. Por isso estaria por perto. Seria mais fácil do Jorge encontrá-lo.
Andei pela sala.
— Ele esteve aqui hoje.
Jorge virou-se para me olhar, segurando no braço da cadeira.
— É o quê?
— Veio pegar o Ravi. Confesso que eu não cheguei a cogitar a ideia de que ele voltaria aqui para isso... mas agora já sei que ele vai continuar por perto, para algum dia tentar dá o bote de novo. – olhei Jorge — E se o moleque teve a chance de contar para ele que está prestes a ser adotado, não vai demorar para ele atacar novamente.
— Então não podemos esperar ele vir e aí pegamos ele?
— Não. Eu quero que você encontre ele o quanto antes e o traga pra nós. Guilherme é esperto, Jorge. Se esperarmos ele vir, é muito provável que ele consiga nos despistar mesmo e fuja de vez com o pirralho. E isso eu não vou permitir que aconteça... Daqui ele só sai se for para a prisão. Farei de tudo para que isso aconteça.
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Josy Teotonio
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Ao Acaso | Concluído
Teen FictionO Orfanato Bom Jesus, em Saquarema, abrigava centenas de crianças e adolescentes abandonados. Dentre eles Guilherme; um rapaz amargurado e extremamente temperamental que se metia em brigas quase que diariamente, recebendo castigos constantes. Mas nã...