Capítulo II

79 47 43
                                    

  Escuridão, vozes, e o soprar dos ventos. Os olhos fatigados de Maeve lentamente se abriram.
   — Outro sonho?
  Submersa sobre as águas calmas de uma gruta, ela viu pelo buraco no teto um céu que nunca vira antes, suas cores mescladas em azul profundo e púrpura pareciam cintilar, e isso a deixou profundamente impactada, a beleza era surreal. E as estrelas naquele lindo céu emitiam um brilho incomum que poderia facilmente lhe cegar, mas por algum motivo ela podia vê-las, observá-las.
    Calmamente, a menina de cabelos laranja se levantou, inexplicavelmente, ela conseguia andar livremente sobre as águas. E ela caminhou, caminhou devagar até a luz que ofuscava da outra extremidade. Quando a menina saiu da gruta, ela continuou a caminhar em passos rápidos, pois ansiava chegar até as margens, chegar até ao vale verdejante além. As montanhas eram adornadas, algumas, por lírios brancos e azuis, lírios-dos-vales, outras, por flores-de-íris, tulipas vermelhas, alguns coelhos selvagens corriam pela vegetação, além dos cervos, antílopes, e raposas. Maeve ficou encantada quando passou ao largo de cisnes brancos que pareciam se banhar com a luz ofuscante do luar.
  Ao tocar com os pés na superfície da terra, enquanto ainda ouvia a melodia dos piscos-de-peito-ruivo, uma impetuosa brisa soprou, fazendo a grama alta farfalhar, e seus longos cabelos alaranjados balançar, então ela ouviu o som de uma gaita de fole, um clarão emergiu em seus olhos, então a menina foi teletransportada para outro lugar, um campo vasto e nivelado, a neve que caía era tão lenta que parecia imóvel, facilmente alguém poderia pegar aqueles flocos de neve com as mãos, ela fitou o vasto campo, não havia nada além da neve fresca. Acima dela o céu era alvo, e tão denso que lhe causava extrema ansiedade, a terra em que ela pisava estava coberta de neve, mas seus pés não afundavam, ela esticou a mão direita, e com o polegar e o indicador, segurou um dos flocos de neve, novamente um clarão emergiu, novamente ela ouviu o som da gaita de fole ressoar, mais alto, mais intenso, sem forças ela caiu no chão e tudo escureceu.

  Vozes, várias vozes sopraram em seus ouvidos; vozes suaves: "Veja! Ela veio nos resgatar.", "Ela veio nos resgatar.”, “Alguém veio nos resgatar?", "Ela! Ela veio nos resgatar!"; Vozes angustiadas: "Não há escapatória.", "Não há.", "Vamos morrer." , "Irão nos matar."; Turbilhão de vozes, murmúrios, sussurros: "Eu estou com tanto medo.", "Ouço gritos, muitos gritos.", "Me vingue irmã.", "Mate-o.", "Ele merece punição.", "Sim, eles merecem punição.", "Isso. Destrua-os.", "Lentamente.", "Lentamente", "Mate-os".

     Então seus olhos se abriram, novamente ela estava naquele corredor extenso e estreito, iluminado apenas por alguns candelabros. Ela prosseguiu pelo corredor, dessa vez sem medo, sem receio. Ela prosseguiu.
  Aparentemente era o mesmo corredor, mas dessa vez não havia rachaduras nas paredes de barro, dessa vez não havia o som de águas correntes, as águas correntes. Em frente aquela bifurcação, fitando aqueles dois caminhos, ela entendeu que a sua sanidade havia se apartado, foi quando ela sentiu um sopro refrescante que a tranquilizou, que trouxe calmaria.
   — Miragem?
  Então, como em uma visão vinda do além, ela viu uma simpática senhorinha de longos cabelos alvos amarrados em um coque baixo, sentada no assoalho de uma cabana ela debulhava os feijões de um pequeno cesto, e então, ela se  levantou e desceu a curta escada de madeira, e caminhou em direção a entrada de um simplório vilarejo. Alívio, ao vê-la partir, Maeve sentiu alívio. E num piscar de olhos ela recobrou a, talvez, consciência. Novamente o Ser a guiou pelo corredor, e no final dele o mesmo grande portão aberto, a mesma luz mesclada em escuridão. Mas dessa vez o Ser não a deteve e sem olhar para trás ela adentrou pelo enorme portão. Novamente o vento soprou, a luz se dissipou, o portão se fechou, e Maeve acordou.

┏━━━━ • ✿ • ━━━━┓

  Com o cantar melódico de um passarinho parado no peitoril da janela, Maeve despertou, os olhos negros daquele belo passarinho alaranjado fitaram os olhos verdes de Maeve antes dele sair voando janela a fora. Ninguém saberia dizer se tudo aquilo que ela via era real, sonhos, ou visões. Quem saberia?
  Então, Maeve se levantou, por algum motivo seu corpo doía demasiadamente, ela sentou-se na cama, olhando ao redor, e percebeu que não estava em casa. O quarto em que estava era pequeno e bem iluminado, não por causa das velas espalhadas pelo quarto, mas sim por causa da grande janela atrás da velha cama de solteiro. O assoalho de madeira era velho, e as paredes desgastadas, e entre o espelho e a porta, havia uma cômoda com alguns rabiscos.
  Pela janela escancarada ela podia ouvir pessoas conversando do lado de fora, mas não olhou, ao invés disso, a menina inquieta começou a vasculhar pelos cantos do quarto algo que a ajudasse a descobrir onde estava, e como havia chegado lá. E fora naquele momento em que ela ouviu passos dentro da cabana, ela se aproximou da porta entreaberta, e pela fresta espiou do outro lado. O que havia ali era uma cozinha pequena e simplória, os poucos armários estavam desgastados,  o tapete persa em frente aos armários e a pia de ferro bruto dava espaço para a mesa de madeira de quatro lugares.
  Maeve coçou os olhos, sem acreditar no que estava vendo, sentada em uma das cadeiras, de costas para os armários, estava ela, a simpática senhorinha que ela vira em seu sonho, ou o que tivesse sido aquilo, sua pele escura era semelhante ao ébano e marcada pelas passagens do tempo, suas roupas eram constituídas em um vestido até os calcanhares de cores acinzentadas, de mangas curtas, e de decote em u, suas sandálias de tiras eram de couro, e amarrado no seu quadril, um avental florido.
   Colocando o jornal sobre a mesa, a senhorinha suspirou enquanto esfregava os olhos cansados.
    — Meu filho. Que diachos tu pensa que tá fazendo? — Pegando novamente o jornal em mãos, ela deu outra boa olhada. — Por favor, proteja esse cabeça oca, Grande Pai. Apesar da sua estupidez, ele é um bom menino.
   — Senhora Jemima?
  Uma voz suave, porém, preocupada ressoou e a porta que dava para a sala de estar se abriu. Maeve se encantou com a mulher que acabara de entrar, era uma negra bonita e graciosa, seus cabelos cacheados eram de um castanho brilhante, e seus pequenos olhos eram acinzentados. Maeve, jamais imaginaria que através daqueles olhos meigos e daquele sorriso largo, havia uma mulher triste e solitária.
  — O que houve? — Disse a moça assustada, enquanto aproximava-se de Jemima que secava os olhos marejados. — Por acaso, a garota que o mestre encontrou... ela morreu?
    — Pai! Não. — Exclamou Jemima, que curvou a cabeça em direção à mesa, e,  fitando o velho jornal, emitiu um leve suspiro.  — Veja. — Disse ela entregando o jornal para a mais moça.
   — Um jornal?
   Enquanto a mulher passava os olhos pelo velho jornal, Jemima levantou-se e caminhou em direção aos armários. E colocando o jornal sobre a mesa, a moça soltou um longo suspiro.
    — Esqueça-o, senhora Jemima. — Ela se levantou. — Ele faz parte daquela gangue, sempre foi assim e sempre será assim.
     — Eu sei... eu sei, Rebecca. Mas...
   — Eu entendo que a senhora se apegou a ele. Mas ele é um fora da lei. — Indo em direção aos armários, a moça se aproximou de Jemima e abaixou o tom de voz. — Um assassino.
  Pondo algumas lenhas no fogão Rebecca pôs fogo nas lenhas para esquentar algumas panelas de ferro que ali em cima estavam, enquanto a outra continuava a olhar o jornal em cima da mesa, e a tristeza em seu olhar era tão profunda que doera a pobre e perdida alma de Maeve, que ficou tão inerte naqueles olhos cor de mel que nem notou a pequena criança a encarando da outra extremidade da cozinha. Se a garotinha tinha sete anos era muita coisa, era uma cópia perfeita de Rebecca. Maeve não esperou a garotinha abrir sua boca enorme e dar um grito tão agudo que daria inveja às cantoras de ópera de Hamilton Hill, não, ela rapidamente fechou a porta e saiu disparada em direção a janela escancarada.
  — Vovó! Vovó! Vovó!
  — O que foi menina?
  — A moça, ela acordou, vovó!
  Maeve, ouvindo tudo, sentiu um frio na barriga e um calafrio na espinha, afinal, quem raios era aquele povo?
  — Aí, vovó. Que bom que ela acordou, eu já achava que ela tinha batido as botas.
  — Que linguajar é esse?
  — Aí, vovó! Que bom que ela tá viva, né? Espero que ela goste de mim. Será que ela vai gostar de mim?
    — É claro que sim, Annabelle.
  O coração de Maeve pareceu chegar na boca quando ela viu a porta se abrir. Por algum motivo, que naquele momento ela não se lembrava, ela estava apavorada, ela não confiava mais em ninguém, Maeve só queria sua casa, sua família. E por mais que o pensamento de fugir pela janela havia passado pela cabeça de Maeve, o que a aguardava depois era somente um precipício. Ela não tinha para onde correr, para onde fugir.
  — Q-Quem são vocês!? — Ela vociferou como um gato acuado.
  Até porque que raios de lugar era aquele? Era para ela estar em casa se preparando para o fim do outono. Maeve lembrava nitidamente de pôr Levi para dormir enquanto lia para ele, ela lembrava de voltar para o seu quarto e se deitar em sua cama, ansiando pela festa da colheita, desejando que Brawley finalmente retornasse.
    — Maeve, não se preocupe. — Disse Jemima, tentando acalmar a menina assustada, porém, Maeve apenas gelou ao ouvir seu nome ser proferido por aquela estranha. Para Maeve tudo aquilo era uma confusão sem tamanha.
  — A gente não vai te machucar. — Dizia Annabelle com um sorriso tenro.
  — Conversa. — Maeve respondeu rispidamente.
  — Não precisa ficar com medo.
  Annabelle tentava se aproximar ainda esbanjando o seu sorriso brilhante, e estendeu sua mão para Maeve que apenas a ignorou.
    — Não iremos lhe machucar. Eu prometo. — Disse Jemima, ainda distante.
   A garotinha continuava a encarar Maeve, e sua pequena mão continuava estendida. Annabelle tinha a doçura da avó, que não conseguia ignorar alguém que visivelmente precisava de ajuda, a menina por mais nova que fosse já havia visto como alguns seres humanos podem ser invencíveis e até cruéis. Porém, percebendo que a menina assustada não seguraria sua mão, ela se afastou, dando lugar para Jemima que se aproximava.
   — Você deve estar faminta, não? Vou preparar algo para você comer, depois a gente conversa melhor.
    — Não. Obrigada, mas não estou com fome. — Maeve era teimosa, e por algum motivo que sua memória não se permitia lembrar, ela estava ainda mais receosa com estranhos.
  O que Maeve queria naquele infortúnio momento não era um prato de guisado, ou qualquer tipo de afeição de estranhos, o que ela queria era respostas. Onde ela estava? Quem eram aquelas pessoas? E o mais importante, como ela havia chegado ali? Esses eram os questionamentos de Maeve, porém, antes mesmo de abrir a boca para perguntar qualquer coisa, seu estômago roncou tão alto que a garota que parecia uma boneca de porcelana ficou tão vermelha como um pimentão.
   — Pareceu um trovão. — Annabelle caiu na gargalhada.
  
  Finalmente, Annabelle conseguiu persuadir Maeve, conduzida até a cozinha, ela se sentou em uma das cadeiras que Annabelle puxou para que ela se sentasse, sem jeito, a menina que já não estava mais tão rubra, se sentou e recostou sobre o encosto cumprido da cadeira. Como em todas as vezes que a ansiedade queria a engolir por inteira, as pernas de Maeve começaram a inquietar-se.
    — Você deve estar com muita fome, Maeve. — Disse Annabelle, com evidente ânimo, enquanto afastava uma fina mecha de cabelo ruivo que pendia sobre a face da mais nova amiga, e com um sorriso amável, ela pôs a mecha atrás da orelha quente e vermelha de Maeve. — Papai está trabalhando muito para que no inverno não falte comida. Maeve, você sabe qual é a minha comida favorita?
     Maeve balançou a cabeça em negação.
     — Eu amo chorba, o da mamãe é maravilhoso. — Olhando para a mulher mais jovem, que estava logo atrás no fogão a lenha, ela se aproximou dos ouvidos de Maeve e abaixou o tom. — Mas o da vovó é melhor, só não diga a ela, ou ela ficará triste. Qual é a sua comida favorita?
    — Shepherd 's Pie. — Ela respondeu, se atentado aquela cozinha que agora conseguia ver mais amplamente, até que uma coisa chamou sua atenção: um quadro estranho na parede, uma pintura de família, e o rosto de um deles lhe parecia muito familiar.
     — Não sabia que o Cole fazia torta. — A menina franziu a testa enquanto fitava a avó.
     — Aí Annabelle. Acho que não foi o ferreiro Cole que inventou a torta. — Rebecca ria.
  Rebecca Peregrine, a esposa do primogênito de Jemima, se casou ainda muito jovem. Aos dez anos foi abraçada pela família Peregrine quando foi encontrada vagando no Porto de Yroria, ninguém nunca descobriu realmente como ela havia acabado naquela situação, e nem descoberto como era seu real nome, mas era esforçada e tinha um brilho incomum. Rebecca, o nome que Jemima deu a ela, se apaixonou perdidamente por David, com quem se casou quando completou dezessete anos, e alguns meses depois já estava grávida de sua unigênita, Annabelle. Diferente da querida filha que tinha olhos curiosos e nenhuma papa na língua para o lado de Maeve, Rebecca ficou calada e não ousava olhar diretamente para a branca de cabelos laranjas e sardas no rosto, as únicas palavras que as duas trocaram foram breves saudações.

Em Busca do Eu: Lágrimas e Sangue Onde histórias criam vida. Descubra agora