Capítulo III

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Deitada sobre a grama verde, Maeve encarava o céu limpo enquanto ouvia o farfalhar da grama por causa do vento suave que soprava, até que o vento trouxe aos seus ouvidos uma voz doce que ressoou à sua direita, ela levantou-se e procurou de onde vinha aquela voz. Ela vinha de uma caverna não tão distante de onde ela estava. Maeve então caminhou até lá. A barra do seu longo vestido se arrastava pelo chão e se sujava por causa da terra, ela ainda estava na metade do longo caminho quando o vento se intensificou, e grossos pingos de chuva começaram a cair do céu. Parada em frente a entrada da caverna da qual viera a voz, ela observava com certa inquietude, uma gota de suor frio desceu de sua testa, e um calafrio percorreu seu corpo, então ela ouviu um grito abafado, a chuva se intensificava cada vez mais, assim como o vento, que agora balançava seus cabelos avidamente.
Os olhos de Maeve se arregalaram quando ela viu escorrer da entrada da caverna e passar por ela um rio estreito como que de sangue.
- Maeve. - Uma voz infantil ressoou - Por que você não veio me ajudar? Eu estava sozinho.
Ela conhecia aquela voz.
- Levi?
- Venha, Maeve. - Maeve engoliu em seco. - Papai está aqui, e mamãe também. Venha, Maeve.
E quando ela deu um passo para dentro da caverna, uma mão peluda e com unhas afiadas a puxou para dentro. Ela sentiu mãos, muitas mãos tocarem seu corpo, e no meio do breu, iluminado por uma fraca luz avermelhada, viu Brawley, o antigo Brawley.
- Ela está atrás de mim. - Cochichava ele, com olhos aterrorizados. - Eles irão me pegar, Eve.
- Quem, Brawley? Quem está atrás de você?
- É tarde demais, Eve. Por que eu tenho que ter o mesmo sangue daquele homem? Por que!
Subitamente, Brawley pulou para cima de Maeve, e já não era mais o pequeno Brawley, o homem já feito estava despido, e suas mãos acariciavam seu rosto atônito.
- Se você é jogado no inferno é mister que se abrace o capeta. Não é o que dizem? Não é mesmo? - Dizia ele, alucinado. - Eu escolhi você Maeve porque você tem alguma coisa de especial, sua morte me trará poder, muito poder. E eu terei tudo, tudo o que foi tomado de mim. Tudo. Tudo. - Sussurrava ele, como um louco. Inesperadamente, suas mãos fincaram no pescoço magro da garota, e seus grandes olhos a fitaram com ódio, porém, não era mais Brawley, mas sim uma mulher de beleza diabólica. Já quase sem ar, Maeve olhou para o pescoço daquele ser e viu um colar antigo com um pingente estranho, sua cor era vermelha como sangue e emitia um brilho como a de uma vela, e quando, com muito esforço, tentou puxá-lo ela acordou subitamente.

Os finos lençois acinzentados estavam úmidos por causa do seu suor, ela nunca teve medo do escuro, até mesmo quando era pequena, porém, o breu daquele quarto a trouxe pânico, sua respiração oscilava, rapidamente ela se levantou da cama, esbaforida, com o coração a mil, ela então abriu a janela, e a luz da lua cheia iluminou o quarto.
- Santo Deus. - Maeve suspirou aliviada.
Ela estava sufocada, precisava sair daquele lugar, então, levada por impulsos, ela vagou pela estrada de chão batido. A modesta cabana de Jemima estava no topo de uma colina, e atravessando pela beirada de um pequeno lago, adornado por campânulas azuis e brancas, ela desceu o declive acentuado, até chegar nas ruas mais agitadas do vilarejo.
No jantar que teve com a família Peregrine, eles contaram um pouco sobre o vilarejo, ela descobriu que seu nome era Liliance. Descobriu também que o pequeno vilarejo fora fundado pelo bisavô de Jemima, Rudolph Peregrine, um ex-escravo que liderou um grupo de pessoas que conseguiram fugir da terrível escravidão do reino de Galadron, fugiram até aportarem em uma pequena ilha ao leste. O homem era sem dúvidas um líder nato, brilhante, e, sobretudo, corajoso. Maeve ficou a imaginar as inúmeras batalhas que Rudolph enfrentara ao longo de sua vida, e inspirou-se na sua irredutível coragem de libertá-los de suas correntes, de seus grilhões.
O pequeno vilarejo de ruas estreitas, e de chão batido tinha as casas uma colada a outra, notava-se que era difícil ter muita privacidade ali, as poucas luminárias arandelas ficavam espalhadas pelas paredes das casas, do Saloon, e do único armazém. A rua estreita se estendia por poucos quilômetros até chegar ao estábulo que ficava quase fora do vilarejo, ao lado dele, uma cabana de madeira de dois andares, e não tão distante do estábulo havia um grande campo de trigo, outro, quase do mesmo tamanho de aveia, e outro, um pouco menor, de cevada.
Maeve continuou a caminhar na direção contrária do estábulo, em direção à entrada do vilarejo. Na entrada, havia uma placa de madeira enfiada no chão, entalhada: "Bem-vindos a Liliance". Então, a menina encarou a estrada de terra que seguia pela montanha, o mar estava logo abaixo, talvez algumas horas de caminhada eram necessárias para chegar até lá. E ainda pensando nisso, a menina se sentou em um cepo de madeira que estava ao lado da placa, e continuou a observar o horizonte, a lua iluminando a estrada e as árvores que a ladeavam, enquanto ela sentia o cheiro suave de terra e das flores.
- Ah, bonequinha. Não vai embora não.
Um pouco distante do vilarejo, escondida entre as árvores e as moitas, ela viu uma cabana mal iluminada. Saindo dali se deparou com um homem em trajes íntimos, o galante negro de cabelos crespos e curtos segurava o braço de uma moça alta de aparência comum, de longos e ondulados cabelos castanhos, e olhos afiados.
- Eu preciso ir, ferreiro. - Disse ela com voz manhosa. - Se meu noivo nos pegar aqui, ele estripa você e eu.
- Aquele imbecil!? Princesa, eu sou muito mais rápido no gatilho do que aquele idiota.
- Ah. - Ela sorriu amavelmente, e então, sacou sua pistola do coldre e enfiou na boca do homem, que a essa altura a olhava apreensivo. - Dobre sua língua suja quando for falar dele. Meu amado é muito mais homem do que você jamais será. - Disse ela, olhando para as partes do sujeito.
E com agilidade ela tirou a pistola e a guardou novamente no coldre.
- Se é assim, querida. - Continuou o homem, tentando se estabilizar. - Por que esteve na minha cama até agora a pouco?
- Ferreiro. Isso aqui é apenas luxúria, passageira como o vento, o que sinto pelo meu amado, é amor verdadeiro e profundo. - Alegou a moça, denotando certo orgulho.
- Se ele soubesse disso. - Sorria o sujeito, enquanto dava uma breve olhada para dentro da cabaninha. - Ele também pensaria dessa forma? - E então, soltou um breve riso.
- Acha mesmo que ele acreditaria em um ninguém como você? Antes de terminar sua frase ele já teria explodido a sua cara. - E rindo montou em um Appaloosa leopardo e foi embora, e o homem ficou parado ali, observando cada movimento que ela fazia, totalmente hipnotizado por aquela mulher. E, ao notar a presença de Maeve entre os arbustos, sua feição logo mudou.
- O que está bisbilhotando aí, pirralha de merda? Vai pra casa! - Gritou ele, antes de entrar para a cabana e fechar a porta com brutalidade.
- Eu, eu não estou bisbilhotando nada! Que audácia! - Maeve se levantou do toco, totalmente indignada. - Espero que ele estoure sua cara mesmo! Humph! Desavergonhado.
Ainda resmungando, ela seguiu seu caminho de volta, de volta para a casa da senhora Jemima. O curtinho passeio ao ar livre a fez bem, a fez esquecer um pouco de toda aquela confusão que sua vida viera a se tornar.
Na subida ela viu uma pequena casinha situada abaixo do morro que era adornada por margaridas, e o lago ao lado era adornado por vitórias-régias e flores de lótus. Em frente ao lago, uma senhora, de pele tão branca como a neve lentamente se virou para ela, e Maeve percebeu que esta era cega, com gestos ela a chamou para mais perto.
- Venha, menina. Não precisa ter medo. - Ela sorriu amigavelmente. - Como você cresceu, se tornou uma linda mulher. Está na casa da minha amiga Jemima, não está?
- Quem é você? E como sabe disso? - Maeve a indagou, enquanto aproximava-se cautelosamente. E meio que deixando de lado, o fato de ela agir como se já a conhecesse.
- Eu sei de muitas coisas, menina. - Disse ela se aproximando, e sem que Maeve pudesse sequer perceber, ela já segurava uma de suas mãos. - Você carrega grandes dores, não é? Grande sofrimento. - Continuou ela, enquanto apertava a mão da menina, que começava a suar. - Mas... você não sabe, não é? Ainda não pode saber.
O cenho de Maeve franziu ao ouvir aquilo, e quanto mais Maeve tentava puxar a mão com mais força a senhora a segurava.
- Isso não é covardia. - A menina a encarava com medo, porém, sua curiosidade era esmagadora
A velha senhora acariciava a mão de Maeve, até que seu rosto empalideceu e seu olhar se tornou preocupado.
- Escute-me, eles virão atrás de você novamente. Eles querem tomar o poder a todo custo, não terão pena de ninguém, idosos, grávidas, crianças. Eles matarão a todos para que se cumpra o grande ritual. Quando chegar a hora, e você saberá, não fuja. - Disse ela, com uma autoridade incompreensível. - É você que será levantada para lutar pelo povo.
Gentilmente ela soltou a mão da confusa menina, e com dificuldade se abaixou e colheu uma rosa carolina e a depositou atrás da orelha de Maeve que fitou aqueles olhos esbranquiçados.
- Escute-me, não passe pela porta aberta. Você não está pronta, se passar, grande sofrimento terá e com ele não conseguirá lidar. Não abrace a luxúria.
Exibindo um sorriso melancólico, a senhora se afastou e sentou-se próxima ao lago novamente, então Maeve se virou e partiu.
Ao subir a estrada, já um pouco sonolenta, ela percebeu pegadas de ferraduras no chão de terra batida, pegadas que não haviam antes. Adentrando na cabana, viu que as luzes estavam acesas, mas não havia nenhum sinal que alguém estava lá, ela entrou no quarto e fechou a porta sobre si, sentou-se na cama, e após tirar as sandálias de couro, desabou sobre a cama. Pensar em tudo o que havia feito no dia, e em todas as coisas que havia de fazer no dia seguinte, era um hábito para ela, mas esse hábito fora logo interrompido quando ela ouviu vozes e risos vindo do lado de fora.
- Aí, meu filho... - Suspirava Jemima, após uma longa gargalhada. - Todas as vezes que tu vem aqui me enche de alegria, e de tristeza também.
Jemima não obteve resposta da outra parte. Com imensa curiosidade, Maeve desabou-se na janela, quase caindo da mesma, mas mesmo com todo esse esforço, não viu com quem Jemima conversava, então voltou para a cama, lutando contra o seu lado bisbilhoteiro. Ela deitou-se novamente na cama e fechou os olhos, até que foi preenchida por uma voz misteriosa e profunda, uma voz que fizera sua puberdade se manifestar sem qualquer receio.
- Grand-mère. - Ele continuou após pigarrear. - Esse é quem eu sou. Eu nasci assim, eu vivo assim, e certamente morrerei assim. - Disse ele, com um sotaque cálido. E logo depois, ela ouviu um riso que viera dele, tom grave, levemente melancólico, porém inebriante.
- Meu filho...
- Eu só vim aqui para dizer, à plus tard. - Ele a interrompeu, talvez por receios, ou pena. Maeve não ouviu mais nada depois daquilo, e, talvez, nem o início ela deveria ter ouvido.
Instintivamente, ela levantou-se novamente e debruçou-se no peitoril da janela, tentando arduamente ver o dono daquela voz profunda, abrasadora. E a única coisa que conseguiu ver foram suas costas largas que estavam sendo iluminadas pela luz fraca da lamparina, por debaixo de sua camisa branca de mangas longas, que estavam dobradas até os cotovelos, ela viu os contornos de seus músculos, que logo foram escondidos pelo seu casaco grosso, que colocará antes de subir em seu cavalo, e seus cabelos eram como seda, e tão negros como a escuridão de obsidiana. Maeve só notou que havia adormecido quando sentiu o sol queimando a sua cara.
Jemima já estava acordada, sentada na mesa enquanto costurava um vestido vermelho até que viu Maeve parada na porta.

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