Lugar Desconhecido, Inverno de 1890
O som dos disparos ecoando em seus ouvidos, sangue escorrendo de suas pequenas mãos. Essas são as duas únicas coisas que ela ainda conseguia se lembrar, tudo antes disso se tornou um borrão em sua confusa mente. Ela não sabia o porquê, mas ela precisava subir a montanha o mais rápido que conseguisse, então, em passos rápidos, a menina percorreu a extensa estrada. Seus pés atolavam na neve fresca deixando suas pegadas arrastadas para trás, as rajadas de vento ficavam cada vez mais fortes e o frio parecia cortar sua pele como agulhas afiadas.
Ao longe, ela pôde ouvir gritos agonizantes e o som dos contínuos disparos eclodirem no ar que faziam seu peito apertar. Já exausta, ofegante, e com os pés calejados ela se escondeu na fenda de uma grande rocha, escorou-se contra a rocha fria e deslizando contra ela sentou-se no chão coberto por uma camada grossa de neve fresca, suas pequenas mãos nuas, congelantes, já mudavam de cor, a cor da dor.
Ela ainda tremia, talvez por causa do frio impetuoso ou simplesmente pelo medo, quando seus olhos como duas grandes esmeraldas se elevaram, e ela deslumbrou o céu, um extenso céu cobalto repleto de estrelas, a garota se maravilhou diante de tamanha beleza. E quando voltou para a sua assombrosa realidade, minutos ou horas depois, ela notou que não ouvia mais nenhum barulho, nenhum grito, nenhum disparo. Com muito esforço e com uma das mãos apoiadas na rocha, ela se levantou e caminhou em direção à densa floresta à sua frente, que parecia lhe chamar aos sussurros. A lua cheia era a única luz que clareava parte da densa floresta de grandes pinheiros cobertos por neve, e a cada passo que ela dava, por mais profundo que adentrasse na parte escura da floresta ela continuava em frente, e ao cerrar os punhos teve a convicção de que deveria seguir em frente.
Cada vez mais distante de onde estava, seus passos ficavam cada vez mais lentos, mais contidos, os flocos brancos de neve pareciam cair lentamente, assim como as suas lágrimas, mas por alguma razão ela não sentia mais medo.
Ao chegar na parte mais funda da floresta, ela viu no meio daquele breu um feixe de luz vindo do pico de uma montanha, ela subiu, desajeitada, e bastante ofegante. Enquanto subia a íngreme montanha, um repentino e inexplicável sentimento de alívio a tomou por completo, e não conteve o largo sorriso em seus lábios. A cabana que ela viu não era tão grande, e não tão longe dela havia uma latrina com candelabros ainda acesos, ao lado da cabana de madeira, uma estaca fincada na neve, e presa nela uma bandeira balançava com a imponência que só um guerreiro valente tem, e ao olhar para aquele lugar, um sentimento reconfortante encheu o seu coração, era um lugar seguro.
A porta rústica de madeira estava entreaberta, e perto dela, jogada ao chão, a trava de ferro bruto estava quebrada, cautelosamente ela entrou na cabana, e admirando a aconchegante sala, fechou a porta. A cabana estava quente por causa da lareira acesa, um enorme tapete feito de pele de urso estava estirado no assoalho de madeira da sala, e nele havia respingos de sangue, seus olhos cansados seguiram os pingos que se transformaram em um rastro de sangue, como se alguém muito ferido tivesse se arrastado em uma tentativa de fuga, e os rastros de mãos nos móveis e nas paredes a entristeceram, tão pequenas, uma profunda tristeza tomou conta da sua alma. E seus joelhos desabaram no chão quando ela encontrou o fim daquele rastro.
Em frente a porta da cozinha havia um pequeno corpo estirado no chão, em uma explosão, as lágrimas pesadas começaram a deslizar sobre sua face, e quase se arrastando, foi até ao pequeno corpo, um menino de cinco anos de idade, seus cabelos lisos e alaranjados caiam sobre a sua face, e seu frágil corpo estava encharcado de sangue que escorria de seu peito e descia pelo chão, ela se viu em uma poça escarlate. Seus dedos trêmulos acariciavam o rosto daquele pobre garoto, era macio como seda, branco como porcelana, e frio, como os flocos de neve que caíam do lado de fora, por alguns instantes, antes de eclodir em prantos, ela fitou seus grandes olhos verdes, que já sem vida encaravam os seus, em súbito ela caiu sobre o peito da criança, sem se importar com todo aquele sangue que impregnava suas mãos, rosto, e roupas.
Seu choro alto, e terrivelmente angustiado, repleto de tristeza, ecoava pela casa, então um nome surgiu em sua mente.
— Levi... — Sussurrou lamentos.
Então ela lembrou-se, lembrou-se de seu pai, Sean, de sua mãe Brígida, e de seu amado irmão que estava ali à sua frente envolto em sangue. Desespero, angústia, naquele curto momento ela sentiu todos os sentimentos que jamais imaginou sentir, medo... solidão, e tudo isso se desfez quando ela ouviu o relinchar de cavalos, e o estraçalhar da porta, e tudo foi tão rápido que ela só notou que alguém entrara na cabana quando se viu sendo puxada pelos curtos cabelos ruivos, suas pernas lutaram, mas a mão continuava a puxá-la com uma força selvagem, seus braços fracos e magros lutavam arduamente tentando se desprender daquela fúria, sem sucesso, com irá ela foi bruscamente jogada contra a parede. Maeve tentou correr em direção a porta quebrada, estraçalhada, mas urrou de dor quando sentiu algo espremer sua mão contra o chão, o pé daquela besta impetuosa iria quebrar os ossos da sua mão a qualquer momento, seus olhos, que antes se desviavam daquela besta, o fitaram. O homem era muito alto e robusto, era uma fera sedenta por sangue, seu rosto estava parcialmente coberto por um pano preto, e seu olhar causou-lhe pânico.
— Fora da lei? — Ela cogitou.
Os olhos aterrorizados de Maeve rapidamente observaram seu corpo, ele trajava um sobretudo de couro e lã, e sua calça de linho estava respingada de neve e sangue. Se fosse um fora da lei, ela estaria mais segura, mas a estrela tatuada no dorso da mão daquele brutamonte só significava uma coisa.
— Se-se-seita?
O homem riu, e logo disse:
— Irei assegurar que tu não escaparás novamente, Miracle. Só tenho que decidir pra quem devo entregar a sua cabeça. — Ele ria.
Maeve não hesitou quando rapidamente pegou o espalhador de brasas que estava ao seu lado, com uma força carregada de pavor e instinto de sobrevivência, ela o golpeou com o ferro que logo soltou ao vê-lo cambalear em direção a porta, o instinto a forçou a correr, ela correu por aquele corredor que conhecia muito bem e entrou no quarto amplo, o único quarto com a janela virada para o mar. Ela entrou, fechou a porta e empurrou a cômoda, barrando assim a entrada, mas não havia hora para alívio já que ela podia ouvir os passos daquela besta atravessarem o corredor, então ela correu para a janela, emperrada.
Maeve não tinha muitas opções. Sem muito tempo para pensar, ela correu em direção ao guarda-roupas e se escondeu entre os grossos casacos, únicos casacos que os aquecem durante os invernos rigorosos das montanhas gélidas de Ravine Mountain. Naquele apertado e abafado espaço ela pôde sentir o cheiro de sua mãe, lavanda suave, e o perfume amadeirado de seu pai que adentrou em suas narinas. O Chefe Sean nunca foi um homem muito vaidoso, mas por Brígida todo sacrifício era válido, até mesmo gastar 60 moedas em um perfume. Mas novamente ela foi tirada de seus devaneios quando a luz invadiu o velho guarda-roupas, Maeve caiu no chão com a coronhada repentina que acertou sua cabeça, e caída no chão ela fitou o homem que a olhava sem qualquer tipo de misericórdia. Claro, ela riu, quando olhou para o corte que havia feito no olho esquerdo do sujeito antes de correr pela floresta da montanha, um corte que lhe cortou parte da face superior esquerda.
— Preciso...
Maeve lutava para ficar consciente, seus pensamentos não se aquietavam.
— Preciso me lembrar... não morrerei aqui, caçarei você, até nas profundezas do inferno se preciso for.
Silenciosa, mas foi a promessa que Maeve fez antes de seu sangue quente escorrer sobre sua testa, antes dos seus olhos fecharem e ela apagar.
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Em Busca do Eu: Lágrimas e Sangue
Romance"Não sei quanto tempo faz que estou presa neste lugar horroroso. Meus lábios estão secos, a fome me enfraquece, e a loucura está quase me engolindo. O que ouço são gritos, e muito choro. A menina presa na cela em frente não para de tremer, e às ve...