Friends

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Aaargh! Bleergh! São quase 3 horas da manhã. Não, precisamente, são 2:31 da manhã. 2:31 e 43 segundos. Duas horas, 31 minutos e 43 segundos de uma madrugada de domingo e eu estou bêbado, no banheiro de um barzinho de esquina, me desfazendo em vômito ao lado do vaso sanitário, enquanto o abraço para conseguir manter o mínimo de equilíbrio. A pergunta que fica é: quão baixo podemos cair? O quanto temos que sacrificar?

Levanto-me aos poucos para que meus óculos não caiam no monte de vômito dentro do vaso, nem no chão e nem na pia. Sim, eu estou totalmente bêbado, completamente melado de vômito e com o maior ódio do mundo.

Começo apoiando as mãos na pia suja e escorregadia, me empurro com os dois pés para longe do vaso sanitário e saio escorregando em meio ao vômito. E saio escorregando em meio ao meu fracasso. E saio escorregando em meio à minha vergonha.

Em pé, com os óculos quase caindo pelo meu avantajado nariz, me olho no espelho e não consigo ver meu rosto. Faz anos que meus olhos não conseguem me enxergar, nem em reflexos, vídeos, fotos, nada. Eu só não consigo me enxergar. Na verdade, nem sequer sei se estou vivo, se todo esse odor imundo ao meu redor existe de fato, se todo esse ardor que carrego no peito é em si real. Não sei se estou numa simulação computadorizada ultra-avançada de uma civilização superior, servindo de cobaia para o software deles, se tudo que vejo não passa de uma extensão da minha imaginação e/ou se tudo isso não passa de um grande delírio. Exclusivamente, sei que sinto dor, minha cabeça e meu estômago estão se revirando sob o efeito do álcool agora. Então, exceto se essa suposta simulação extraterrestre seja o que chamamos de "vida", estou vivo e duas pessoas morrerão.

Tiro meus óculos e os coloco ao lado da pia, na parte superior do vaso sanitário. Se com óculos eu não me enxergo, sem óculos tudo se torna cinzento e opaco. Quando se tem ceratocone no olho direito, com 4,5 graus de astigmatismo e 2,6 de miopia, nada tem forma a 59 centímetros diante dos seus olhos. Não obstante, quando se tem 5,3 de miopia e 1,25 de astigmatismo no olho esquerdo, junto com dois processos de fotocoagulação a laser para que sua retina não descole, você sabe que tem dois olhos extremamente danificados e uma visão de mundo extremamente precária. É como se tudo fosse reduzido a borrões, vultos, pretos, brancos, indistinguíveis e indissociáveis. O mundo perde sua forma diante dos seus olhos e a única maneira de você enxergar beleza na vida novamente é através de uma armação de plástico colada aos seus "olhos". Sem óculos, eu sequer enxergo minha forma no espelho do banheiro, mas já não me importa mais, já me acostumei. É a vida e não há nada no mundo que não possa te acontecer, para o bem e para o mal.

Abaixo-me um pouco e abro a torneira, molho meu rosto e cabelos, pego um pouco de detergente líquido que havia em cima da pia e lavo meu rosto.

— Pronto. Você é lindo, ponha seus óculos e saia desse antro de decadência, seu bêbado! (digo para mim mesmo).

Pego meus óculos e saio pela porta.

Bem, onde é que eu estava? Ah, é uma calourada da Universidade, eu vim com alguns amigos para me distrair, para passar o tempo, para esquecer de mim mesmo e eu queria transar, uma vez que fosse. Só mais uma vez. Meus amigos são ricos. Não tão ricos assim, quase ricos, classe média-alta. Eu sou só um cara advindo de uma prole de classe média-baixa com pai e mãe que se dedicaram toda sua vida para criar um filho não tão merecedor assim. Não sendo rico, eu trabalho e estudo. Meus amigos, não, eles só têm que estudar e tudo que eu não tenho, eles têm, pois seus papais sempre vão dar aos seus queridos filhinhos tudo do bom e do melhor.

Todos temos nossas qualidades e nossos defeitos. Vindo eles de famílias que nunca lhes negaram nada, digamos que eles são meio "mimados", se é que me entendem. Uns mais que outros. O japonês extrapola nesse aspecto: é deprimente como ele tenta fazer tudo girar ao seu redor, mais que todos. De todos os meus amigos, ele é o que eu mais desgosto. E é recíproco, visto o número de tentativas que ele fez para os outros se afastarem de mim. Porém, apesar de tudo, não deu certo. Os poucos amigos que tenho fiz na Universidade (com exceção de Will), no mesmo curso e, embora não muito próximos, temos um pouco de lealdade pelo outro.

Ao sair, me deparo com o japonês, montado nas costas de Will (o mais alto de nós), acompanhado por Tony, Cabeça e Enzo, todos juntos, abraçados e bêbados, me chamando para ir curtir a festa com eles, para curtir a vida com eles, mas já era tarde demais...

Eu bebi e fumei naquele dia, também estive dentro da boca de desconhecidas com gosto de cigarro barato e álcool ruim, meus dedos visitaram algumas calcinhas, mas meu corpo estava inerte ao fato de que aquele cenário não transmitia excitação alguma. É claro que não expus minha lamúria, guardei-a para mim, no meu íntimo, onde só eu posso encontrar e só eu posso resolver.

Nós somos jovens, homens jovens na flor da idade, no início da vida adulta, recém-saídos da adolescência e entrando com os dois pés na responsabilidade de ser "alguém". Nesse pequeno instante da vida, nosso tempo está passando, ele não vai voltar, temos que aproveitar, temos que curtir, a vida é rara demais... principalmente para jovens tão inconsequentes como nós. Will era o que mais se dava bem com mulheres, cara bonito. Os demais, como eu, funcionais, mais foras do que acertos, mais distantes do objeto de desejo do que perto de marcarmos gols...

Eram 4:39 da manhã quando me despedi dos meus amigos dizendo que tinha que voltar para casa, que tinha que resolver umas coisas, que tinha que me resolver. Abracei-os forte, apertei suas mãos e me despedi.

São 4:55 agora, e eu estou no ponto de ônibus. Duas pessoas morrerão, eu não consegui transar!


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