A mancha

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Enriquecer. Rogério achava engraçada aquela palavra. Quando lhe perguntavam o que ele fizera depois de voltar do exílio e ele respondia “enriqueci” era como se fosse alguma coisa orgânica. Como se dissesse “engordei” ou “perdi os cabelos”. As pessoas riam e não pediam detalhes, não perguntavam “Enriqueceu como?”. Se ele dissesse “fiquei rico” teria que explicar. Contar que comprava e vendia imóveis, pegava casas e prédios abandonados, reformava e vendia, ou demolia e negociava o terreno. Mas dizer “enriqueci” era uma maneira de desconversar. De dizer que enriquecer lhe acontecera como qualquer outra fatalidade biológica. Não era culpa sua. Os poucos que conheciam a sua vida riam da resposta como quem diz: “Bem feito!”

        Comprava e vendia imóveis. Comprava barato, arrumava e vendia ou demolia. Vivia atrás de prédios decrépitos, de casas em ruínas, de sinais externos de abandono. Dedicava-se àquilo como alguém que se entrega a uma causa. A mulher, Alice, já se acostumara com suas freadas bruscas, sempre acompanhadas da frase “Olha ali!”, quando ele avistava outro edifício morto, outro jardim selvagem, outro possível negócio. Alice dizia “Bendito cinto de segurança”, porque o cinto salvara seu rosto e seu casamento mais de uma vez. Rogério descia para examinar o prédio e não era raro deixar o carro parado no meio da rua com a mulher dentro aguentando as buzinadas. Ela o conhecera depois do exílio, depois de tudo passado. Já o conhecera assim, agitado, estabanado. Tendo pesadelos. Dizia: “Deixa o passado no passado, que é o lugar dele, Rô.” Não sabia se ele já era assim antes do exílio, antes de se conhecerem, antes de passarem uma noite inteira discutindo cinema, discordando em tudo e se apaixonando. A mãe dele não ajudava. Dizia “Ele sempre foi muito ansioso”. Mas o exemplo que dava era o jeito dele de comer pêssego quando garoto.

        Ele se mantinha informado sobre heranças litigiosas, falências, despejos, sinais de inadimplência e impostos atrasados, tudo que pudesse indicar a existência de uma propriedade desvalorizada em algum lugar para comprar barato, arrumar e vender ou destruir e enriquecer ainda mais. E dirigia olhando para os lados. Examinando as fachadas dos prédios. “Procurando os cariados”, dizia. Era a sua causa, por ela ele sacrificava tudo. Percorria a cidade, de carro, atrás de sinais de decomposição. Dizia que rodeava a cidade como um cachorro faminto rondando um refeitório, atento para as sobras. Ou para comida deteriorada. O sogro, pai de Alice, que era do ramo imobiliário, dizia: “Ele vive do nosso lixo.” E chamava-o de “Rogério, o Demolidor”.

        — Olha ali!

        Freada brusca. Era um prédio estreito de quatro andares. Recuado, atrás de um muro baixo e de um terreno de terra batida que a vizinhança adotara como depósito de lixo.

        — Rogério, nós estamos atrasados. Deixa para ver depois.

        Estavam indo conhecer a casa nova do irmão dela. Jantar marcado para as nove, já eram nove e quinze. E a casa ficava fora da cidade. 

        — Vou dar só uma olhada rápida.

        O portão do muro baixo não existia mais. A porta do prédio estava trancada. Nenhum cartaz, mas uma plaqueta pregada na porta: “Tratar com Miro” e um número de telefone. A plaqueta era pequena. Miro não parecia muito interessado em vender. E era antiga. Ninguém que tratara com o Miro nos últimos anos fechara negócio. Rogério anotou o número na sua agenda. Sempre carregava uma agenda no bolso, para anotações como aquela. Era um homem organizado, apesar da agitação constante. Deu alguns passos para trás para examinar a frente do edifício. Não havia muito o que fazer com ele. Com aquela largura, dava para uma peça na frente, mais duas ou três atrás, no máximo. Escritórios. Todo o prédio como sede de um pequeno negócio. Nem pensar em instalar elevador. Talvez valesse pelo terreno. Trataria com o Miro.

Os Últimos Quartetos de Beethoven e outros contos - Luis Fernando VerissimoOnde histórias criam vida. Descubra agora