Lo

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Dolores, luz da minha vida, fogo das minhas entranhas. Meu pecado, minha alma. Do-lo-res: a pontada língua viajando pelo palato em três etapas, terminando nem esgar para acomodar o "res". Do, Lo, (careta) Res.

        Ela era Lola, apenas Lola, de manhã, fumando, com um pé de bailarina pousado no joelho da outra perna. Lores nos seus slacks cor de abóbora, aterrorizando as empregadas na nossa casa em Paris, onde as banheiras tinham a forma de cisnes. Dolores Fuertes y Obregon nas linhas pontilhadas, administrando a sua fortuna. Mas para mim, na sua cama, nos seus braços, cochichando no seu ouvido (o que ela odiava), ela seria sempre Dolores Fuertes de Barriga. Minha senhora das dores. Minha Lo.

        Quando nos conhecemos em Porto Seguro eu tinha 12 anos e ela tinha 36, ou dizia que tinha 36. Eu tinha o cabelo louro e encaracolado e os olhos verdes, mas fora essa intromissão, talvez holandesa, no meu sangue era um baiano de cartão-postal, um mulatinho reluzente, um amor. Pergunte a qualquer um que me conheceu então, se encontrar algum vivo, se eu não era de levar pra casa. E foi o que a Dolores fez. Eu me chamava Zé Maria e dançava na praia para os turistas com a minha irmã, Janaína. E a Dolores se encantou comigo. "Como te llamas?", ela perguntou. "José", eu disse, e com medo que ela não entendesse repeti: "José" e ela disse "Rosé Rosé, que raro!" O dinheiro dela venceu a burocracia do Brasil, os papéis da adoção saíram logo e em menos de um mês José José Fuertes y Obregon voava para Paris com uma nova fatiota e uma nova mãe, além de um passaporte e um novo nome. O Maria de Zé Maria ficou para trás. Sempre que penso no Brasil, para onde nunca voltei, penso numa Maria dançando sozinha na praia. A parte de mim que nunca cresceu. Que ficou no seu porto seguro, intocada pelos contágios da vida. Bonito isso, hein, leitor? Leitora? Confiem num assassino para ter um estilo floreado.

        Minha mãe de carne não se opôs a minha ida. Era uma boca a menos em casa e ainda sobravam doze. Não sei se encontraram meu pai para contar que eu ia embora com uma espanhola ou se a informação chegou ao seu cérebro antes de ser diluída, no caminho, pela cachaça. Nunca soube mais nada deles, ou da Janaína e dos meus outros irmãos. No avião para São Paulo, onde faríamos a conexão para Paris, Dolores me perguntou se eu não estava emocionado. "Por quê?", perguntei. Ela ficou chocada. Eu estava dentro de uma fatiota e de um avião pela primeira vez. Estava começando uma outra vida. Tudo seria diferente para mim dali para a frente. Eu não estava emocionado? "Estou!", gritei. "Porra, estou emocionado, sim!" Comecei a chorar como chorava na praia quando um turista demorava a nos dar dinheiro. Sentei no seu colo. Gritei: "Obrigado! Obrigado, dona!" Ela ficou radiante. Era o que queria ouvir. Beijou meus cabelos encaracolados. Disse que eu não precisava agradecer. Que nós íamos ter uma bela vida juntos. E pediu que eu não a chamasse de "dona".

        — Posso chamar de mãe?

        — Dolores.

        — Dolores Fuertes.

        — Si.

        — Dolores Fuertes de Barriga.

        — No. Fuertes y Obregon. Ahora es su nombre tambien, Rosé Rosé.

        Me atirei de novo sobre ela, soluçando. Ficamos abraçados assim até a aeromoça vir oferecer o lanche. Comi o meu e o dela.

        Leitor, leitora, isto não é um pedido de clemência. Só peço que me entendam. Não se precipitem. Ainda falta muita coisa para contar. Esperem para dizer quem mereceu o quê. Leiam toda a minha confissão antes de decidir quem é culpado, se alguém for culpado. Minha defesa: nunca na história do mundo o amor corrompeu alguém. Pode ter aleijado, pode ter matado, mas nunca sujou. E esta, embora pareça outras coisas, é uma história de amor.

Os Últimos Quartetos de Beethoven e outros contos - Luis Fernando VerissimoOnde histórias criam vida. Descubra agora