O Nabokov tem uma história parecida, mas sobre xadrez. Esta não é plágio, no entanto. Digamos que é homenagem.
— Sessenta e três não foi um bom ano para esse vinho. Muito ácido.
— Que safra você recomenda?
— A de 65. Excelente, o bouquet, o tanino, tudo.
O outro provou o vinho.
— Você tem razão. Muito ácido.
— Mas não deixa de ser um bom vinho. Seco, mas com um substrato quase doce no final. O que os franceses chamam de après-gout.
— Exatamente. Já vi que você entende.
— Modestamente.
— Aceita um pouco?
— Não, obrigado.
— Ah, um purista.
— Não, não. É que eu não bebo.
O outro sorriu. Obviamente, era uma brincadeira. Uma das maiores autoridades mundiais em vinho não bebia. Boa aquela. Insistiu:
— Só um copo. Garanto que você será indulgente com este pobre 63.
— Mas não bebo mesmo. Nunca botei uma gota de álcool na boca.
O outro parou de sorrir; era sério.
— Mas como? Você entende de vinhos como ninguém e nunca botou uma gota de álcool na boca?
— Nunca.
— Não entendo.
— Eu conto.
O homem tinha sido preso. Não quis entrar em detalhes. Questões políticas. Lutava pela causa do proletariado, era contra a burguesia inconsciente e seu consumismo conspícuo, achava um absurdo alguém pagar uma fortuna por uma garrafa de vinho enquanto outros morriam de fome, acabara preso.
— Na prisão, não me deixavam ler nada. Aquilo, para mim, era a pior tortura. Sempre fui um leitor compulsivo. Não podia passar sem livros e revistas. Mas era proibido.
O outro serviu mais um copo de vinho. O homem continuou na sua mineral.
— Um dia, pedi uma Bíblia. Achei que aquilo eles não podiam me negar. Disse que queria me regenerar, fazer um exame de consciência, me encontrar com Deus. Na verdade, queria era alguma coisa para ler, qualquer coisa. Eles achavam que eu estava sendo hipócrita. Me negaram a Bíblia.
— Puxa...
— Tentei outro estratagema. Gritei que queria saber quais eram os meus direitos. Exigia que me trouxessem uma cópia da Lei de Segurança para eu saber exatamente em que artigos tinha sido enquadrado. Na verdade, só queria alguma coisa para ler. Eles riram de mim.
— Maldade.
— Pedi que trouxessem histórias em quadrinhos, jornais antigos, qualquer coisa. Nada. Me desesperei. Um dia revirei toda a minha roupa, o colchão da cela, o travesseiro. Sabe o que é que eu procurava?
— O quê?
— Uma etiqueta. Só para ter algumas letras na frente dos olhos por alguns instantes. Eu era como um alcoólatra que se contentaria só com o cheiro do álcool no ar. Mas não encontrei nada. Nem a pia nem a latrina tinham o nome do fabricante. Um dia, embora não fumasse, implorei por um cigarro. Um guarda me deu um. Rapidamente, procurei no papel do cigarro o nome da marca. Mas o papel era branco, liso, sem nem uma letra. Eu não aguentava mais. Então...
— O quê?
— Um dia me levaram para interrogatório. Me botaram de pé contra uma parede, os braços estendidos para os lados. Em cada mão eu tinha de segurar um peso e ficar assim, sem deixar cair o peso. Numa das mãos, eles colocaram um cadeira. E na outra... Eu nem podia acreditar...
— O que era?
— Um livro! Um livro pesado, capa dura... Fingi que desmaiava e caí abraçado com o livro. Até hoje não sei como consegui chegar com o livro à minha cela sem que eles descobrissem. Não posso descrever a minha alegria. Eu finalmente ia ver letra de novo. Palavras inteiras. Frases, parágrafos, pontuação... Sentir a textura do papel, o cheiro da tinta, o volume de uma lombada bem torneada na mão. Comecei a saborerar o livro. Só o título eu li e reli umas cem vezes, quase chorando.
— Que livro era?
— Uma enciclopédia de vinhos.
— Ah...
— Passei quatro anos lendo e relendo a enciclopédia. Decorei tudo. Quando aparecia um guarda, eu escondia a enciclopédia debaixo da coberta. À noite lia com luz de vela. De dia, lia de trás para diante e de diante para trás. Chegava a sonhar com o livro. Sonhava com vinhedos, com chateaux, com safras famosas... Até que um dia me soltaram.
O homem tomou um gole de mineral. Sorria tristemente.
— Você voltou à atividade política?
— Não, não. Era outra pessoa. Meus companheiros tinham desaparecido, ou também tinham mudado. Eu precisava tratar da minha vida. Procurar emprego. Um dia, quando dei por mim, estava na frente de uma casa de bebidas, olhando a vitrine. E me dei conta que conhecia, intimamente, tudo sobre cada garrafa de vinho exposta ali. Tudo! Entrei na loja e comecei a percorrer as prateleiras. Era como encontrar velhos conhecidos. Rótulos que eu conhecia apenas da reprodução na enciclopédia ali estavam, ao vivo. Com o último dinheiro que tinha, comprei uma garrafa de bordeaux, um Saint Emilion menor. Levei para a pensão onde estava morando. Abri a garrafa, servi no copo que usava para escovar os dentes e não fui além do primeiro gole. Sempre tivera nojo de álcool e o meu gosto não mudara. Eu era um expert numa coisa que abominava.
— E desde então...
— Desde então me dediquei à crítica enológica. Hoje sou reconhecido mundialmente como especialista em vinhos. Escrevo para revistas de gourmets. As pessoas comentam o meu estilo irônico, o meu distanciamento aristocrático, e me imaginam um sibarita enfastiado. Aposto que meus velhos amigos da esquerda me consideram um traidor. Sou convidado para mesas de milionários — como a sua — e me comporto como um deles. Só que bebo mineral.
— Bem, vamos passar ao conhaque. Qual é o que você recomenda?
— Hennesy. Quatro estrelas.
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Os Últimos Quartetos de Beethoven e outros contos - Luis Fernando Verissimo
HumorEsta galeria irresistível de personagens está nos dez textos reunidos neste volume. Luis Fernando Verissimo vai do drama à comédia, com incursões aqui e ali na tragicomédia. Como no caso do homem que, durante um enfarte, tenta se lembrar de onde bot...