Parte 02 - O tubarão existe!

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- Moço! O que houve com sua mão?

Das coisas pior conceituadas nesse mundo, uma delas é a inteligência. De maneira geral, quando alguém reconhece ou menospreza a dita inteligência do outro, desconsidera que para tal conclusão é necessário haver uma métrica. A questão é: em qual referência está se baseando? Creio que, na maior parte das vezes, em suas próprias intenções particulares - coisa que já digo para descartar o cliché das comparações entre coeficientes. Essa métrica se impõe, na maior parte das vezes, surpreendentemente não se referindo a um paralelo entre supostas capacidades, mas sim posta sob a ótica do quanto aquele aglomerado de ideias se mostra alinhado aos seus próprios objetivos.

Há um evento muito simples que exemplifica essa conclusão. Teve a vez, ainda quando eu possuía duas mãos, em que consumi meu tempo com uma inocente - e inútil - mensagem de reclamação, destinada ao suporte de um aplicativo para busca de trabalhos informais. O sistema era abusivo e cobrava uma taxa por contato de cliente indicado, mesmo quando o serviço não era contratado. Enumerei as evidências de abuso, dando foco no desequilíbrio entre o custo do anúncio e o retorno possível, o que ludibria a esperança de quem atende os serviços em busca de sustento. Era basicamente uma máquina de pescar trouxas - algo muito atrativo para a antiga versão de mim, ainda sem o gancho no lugar do punho. Tolo, na expectativa de receber um bônus que me desse um respiro financeiro, recebi como resposta uma frase que nunca mais me esquecerei. "Lamento que o senhor esteja com esse sentimento...". Ora, ora... "Sentimento"? No mesmo momento, fui apresentado a face mais podre da sociedade: a vontade real de simplesmente anular os discordantes, assim como tudo que deles provém. "Junte-se ou morra!".

Perante os demais, nossa razão é abalizada conforme seus próprios interesses, não importando o quanto fundamentamos nossa fala. Se não fizer parte do que o outro quer de você, deixa de ser razão. Deixa de ser inteligência. Vira apenas "sentimento".

- Te contarei o que aconteceu, mocinha... Promete contar para ninguém mais?

- Juro, juradinho, moço!

- Então tá... - concordou, passando o último produto da compra pelo código de barras.

O costume de menosprezar as conclusões lógicas do outro, sempre que elas não se encaixam na própria vontade, não é uma exclusividade da atendente do aplicativo, bem como também há um vasto arsenal de outros eufemismos, cuidadosamente forjados para depreciar inteligências. Além da fronteira entre liberdades, há muito mais do que apenas chamar a compreensão alheia de "sentimento", extrapolando qualquer vã "desfilosofia".

- Vamos, filha! Não incomoda o rapaz! - interveio, a mãe.

- Não se preocupe, senhora, a loja tá vazia. Tenho tempo para contar minha história - prontificou-se, com simpatia, fingindo não perceber maquiagem borrada e embriaguez na mulher.

- Oba! Conta! Conta! - celebrou, a menina.

- Como eu disse, será nosso segredo...

Dentre as muitas formas de ser tomado pela frustração, há uma forma especialmente mais irritante. No meio acadêmico, chamam isso de efeito Dunning-Kruger, mas prefiro chamar de "a prática masoquista de jogar pérola aos porcos". Ocorre quando se está diante de alguém tão sagaz quanto uma porta, mas tão confiante de sua capacidade quanto uma bazuca diante de uma formiga. É impossível esquecer de momentos em que, diante da exposição de fatos, ouve-se a famosa frase "respeito sua opinião, mas discordo...". Em tempos de excesso informático, com tão baixa capacidade de processamento na mente do cidadão comum, vemos tal resposta até mesmo no intuito de questionar o sabido formato da Terra.

Diante do contexto descrito, "opinião" e "sentimento" são palavras que almejam o mesmo objetivo nas entrelinhas: induzir a concordar, independente das evidências. É o mundo das opiniões. Mundo das certezas sobre o que não se quer saber.

- Nossa! Você é muito esperto, moço! O tubarão tem uma bocona grandona e poderia ter comido você inteiro!

- Exatamente! Acontece que, entre os meus amigos piratas, sou o único com gancho no lugar da mão. Todos os outros ganharam perna de pau.

- Alguém conseguiu pescar o tubarão, moço? Senão eu não quero mais conhecer o mar...

- Não se preocupe! - disse, prestes a sussurrar - Ainda voltarei ao mar e pegarei o tubarão! - inclinou a cabeça enquanto falava, feito quem compartilha um segredo.

- Já chega, filha! - gritou, a mãe, puxando o pano do largo vestido de volta para o ombro e, consequentemente, cobrindo a tatuagem desbotada em forma de golfinho. Um hematoma se revelou logo acima do cotovelo, descoberto pela outra ponta da manga puxada.

É engraçada a adoção de certas frases de impacto, usadas como válidas para tentar reforçar ideias inválidas. "Contra fatos não há argumentos". O que acontece quando a pessoa, delirante, se convence de que sua opinião é um fato, enquanto classifica um fato como sendo mera opinião? Diante disso, para quem tem bom senso, sobra frustração, no mínimo! Nada mais entediante do que debater com um muro.

A morte da lógica é algo realmente irritante, por isso prefiro abandonar diálogos desesperançosos, o quanto antes. Com tal prática, mais uma opinião acaba sendo tratada pelos demais como se fosse fato, que é a minha alcunha de "insociável'', coisa que, de qualquer forma, nem faço esforço para combater, pois o tédio de tentar explicar o óbvio só deixaria as coisas mais irritantes ainda. Prefiro ser rechaçado do que consumir meu tempo tentando desconstruir teimosias, ainda mais quando a teimosia parte de um total vazio opinativo.

O Deus que Nietzsche disse estar morto, assassinado por todos nós, parece ressuscitar das trevas na forma de uma divindade putrefata - comedora de cérebros, obviamente -, sem função social, espalhando seu cheiro de carniça celestial. Enquanto isso, todos tentam convencer os vizinhos de que está tudo bem, que tudo não passa do odor agradável de uma picanha na brasa, sem deixar de acrescentar que quem não suporta esse fedor não passa de um maricas. Realmente, a coisa está fedendo.

Essa páscoa infernal, conduzida por um monstruoso coelho negro cuspidor de fogo, agitando seus chifres de bode, não serve para comemorar o retorno de nenhuma presença salvadora. Muitos não percebem, mas são eles ratos, armando suas próprias ratoeiras e se vangloriando, mostrando o quanto são livres para escolher o tipo do queijo que pesará sobre a iminente armadilha.

- Tchau, moço! Depois quero ouvir mais das suas histórias de pirata!

- Até mais, mocinha! Ainda poderemos falar sobre muitas aventuras! - disse, despedindo-se sem sair de trás do balcão, observando o braço da menina sendo puxado pela mulher.

Às vezes a vida se mostra tão estilhaçada que as possibilidades se multiplicam tanto quanto os impedimentos. De certo, o espelho que reflete mais ângulos é o que se espatifa sobre um terreno extremamente acidentado, com cada pedaço mirando um ponto independente. O artefato abre mão de sua inflexibilidade quase militar, brilhante e desejada, deixando de retribuir o conforto da imagem fiel. Se torna cortante, indesejável, dispensável e, ironicamente, muito eficiente na função de se proteger com as bordas irregulares de seus cacos cortantes.

- Nos vemos em breve... - sussurrou, para si mesmo, olhando na direção do veículo que aguardava a menina atravessar a rua. Um sujeito grande saiu da Kombi preta, ostentando um tubarão tatuado na extensão entre a mão e o cotovelo. O homem suspendeu sua filha pela cintura e a pôs no banco de trás - Ainda passaremos por grandes aventuras, minha nova amiguinha...

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⏰ Última atualização: Jun 03, 2021 ⏰

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