A melhor forma de tratar a verdade é através da fantasia. Pense só: se você fala sobre o planeta "XPTO" do quadrante "Zilhões e novecentos", pode retratar todos os insultos possíveis entre seus povos, sem transparecer um pingo sequer de discriminação. Justamente nesse fato, de se tratar de um contexto completamente infundado, é que reside a liberdade para virar-se do avesso, transmutar-se das camadas visíveis - exteriores - para dentro de si mesmo, expondo as silhuetas das formas que bloqueiam a sua luz interior, para que assim, finalmente, seu pensamento mais amigdalar se comunique com alguma forma de razão externa, feito esconder-se atrás de uma camada translúcida, vítrea, magoada por jatos de areia: é possível saber que alguém está ali, mas pode ser qualquer um. A fantasia é a arte de ser o que quiser, inclusive a parte mais real de si mesmo, geralmente indescritível sob os olhos de uma enfadonha "desfantasia".
Quando se trata de sexo, por exemplo, a fantasia nunca trata da superfície, mas sim de uma confissão. Um expurgo da vontade que parte do âmago da pessoa. Da dita alma. É na fantasia onde um cara esconde a real vontade de comer a esposa do irmão, vestido de Hitler, com a mãe do lado elogiando o desempenho. "Esse é meu menino! Meu filho favorito!". Bem. Lá. No. Fundo.
Acontece que, de fato, a verdade nada tem a ver com prática, nem menos com a sinceridade. Essa, a verdade, está lá, mesmo que não se diga. Ela simplesmente é, sendo verdade.
É engraçado se deparar com alguém que trata a verdade como um grande achado mediante sua própria razão, como se sentisse o dever de sodomizar a paz de todos com sua própria mediocridade. Será que a pessoa já parou pra pensar que a verdade é o que é, mesmo que essa própria pessoa não existisse? Sobre os que se veem como portadores da pílula vermelha diante do escolhido, que desdenham da inteligência alheia em nome de se auto proclamarem coelhos guias da toca, classifico como "Ignorancentristas". Nessa parcela da humanidade, sem tamanho calculável, muitos tipos são facilmente identificáveis. Dentre eles, os mais evidentes são os que respondem antes de ouvir a pergunta até o final, além dos que só exaltam o que está entre os seus próprios interesses, empurrando tal convicção numa tentativa de estuprar as ideias alheias.
- Já acabou de ler? - interrompeu, o chefe - Onde você quer chegar com isso tudo?
- Não faço a menor ideia... Apenas achei que parece bom - respondeu, o jovem, após parar a leitura em voz alta, imaginando como dar continuidade no que escreveu - Pensei que anotar algumas coisas me ajudaria a pensar... Quem sabe até lançar isso... Ganhar com essa parada e pagar as contas atrasadas...
- Para de ser besta! Volta logo pra oficina que o dono da Kombi preta tá aí. O sujeito tá furioso porque nem em dez visitas tu resolveu aquele motor - alertou, vendo o rapaz sair hesitando entre salinha imunda e a garagem.
- Boa tarde, amigo...
- Boa tarde é o caralho! Tu me disse da última vez que a Kombi tava tinindo! Olha só essa merda vazando óleo e batendo pino! - bradou, o grande homem.
Certos aspectos da realidade palpável são muito distantes do que seria uma verdade, tanto quanto a terra está da extremidade da galáxia, pois embora, num ponto, a raça humana se esforce para ser a medula óssea da existência, no outro não há mentes, calendários, olhos ou ouvidos disponíveis, o que não muda o fato de que está lá o que está, do jeito que é, independente de alguém saber ou não, danando-se se alguém pode ver.
A loucura maior está no esforço de esculpir uma competitiva demonstração de sanidade, em meio ao caos de possibilidades abstratas, dos mais diversos telencéfalos desenvolvidos. Visam classificar o que é insano, mas consomem energia se afastando de alguma crítica. É um constante "seja lá mais o que for, menos desconforto".
- Para, moço! Eu vou resolver! Eu resolvo! - berrou, aos choros, com o escândalo rouco de um pranto infantil e desafinado, tentando soltar a mão prensada na morsa.
- Vou apertar essa parada até virar gosma, moleque! Já te dei chances demais! Tá me achando com cara de otário? Filho da puta!
- Não, moço! A mão não... Preciso escr... Preciso traba... - implorou, mas sem resposta misericordiosa.
A fantasia, no final das contas, é o que preserva a verdade. Diante de toda essa massa de existências famintas por extrapolar a simplicidade do mero existir, percebe-se a incessante tensão forçando os modelos propostos de realidade, evitando a sujeira do garimpo, obviamente, mas sem deixar de aumentar a pressão na expectativa de fazer um diamante. Contudo, a busca pelo convencimento dos demais, impingindo uma emulação de verdade na forma desta realidade imposta, nunca se passa por verdade quando focada à partir de outras órbitas, logo, essa joia se racha, revelando que até mesmo a maior densidade já conhecida do carbono, por mais incrustado que esteja nele próprio, apresenta a possibilidade de alguma falha estrutural, podendo ser rompida se não satisfeita com o único o fato que de fato existe: a própria existência. Enfim, na tentativa frustrada de encaminhar ilusões, mais fácil seria abdicar dela - a própria verdade - e adotar logo a fantasia, pois, sobre essa, até mesmo o simples existir já é além do necessário, fazendo-a dissolver-se num ponto em que é possível ser usada para forjar aquilo que se pode, enfim, chamar de verdade.
Visto que o difícil é encontrar o ponto e o tempo exatos onde se encontra a verdade, resta esperar que, devido ao seu estado volátil, a fantasia se espalhe por todos os cantos, para assim conseguir tatear cada rodapé e, mesmo que por acidente, deparar-se com a tal da verdade, sem importar saber qual é esse "onde" e nem "quando".
- Ah, caralho! Já chega! - urrou, o dono da mecânica, sem esconder um sorriso sádico.
- Olha lá! O grandão fez molho de tomate com a patinha do garoto! - ironizou outro funcionário, rindo junto dos demais que se entretiveram com a cena.
- Pronto! Já se vingou do garoto. Agora deixa o menino em paz. Já sujou minha oficina toda de sangue! Puta que pariu... Agora vou ter que procurar um outro ajudante, que tenha duas mãos - ironizou.
Se formos traçar similaridade, com algum esforço, talvez digamos que a ponte entre a realidade e a verdade seja a dor, pois muito dela tem a ver com a própria fantasia, visto que nesta a dor é controlada, se opondo a inegabilidade da existência, que nada mais é que um conjunto entre as dores e seus intervalos.
- Chama uma ambulância, porra! Tira esse moleque daqui antes que eu vomite!
No final das contas, escolhi uma fantasia. Será algo imensamente desagradável aos olhos dos que pensam ter localizado uma certa "verdade", porém a fantasia é minha e farei dela o que parecer mais coerente perante os fatos que me rodearam. Se a verdade me deu de presente uma habilidade ambidestra, é a ela que vou agradecer com a mais tortuosa fantasia de minha mente.
Gosto de vermelho, o que não chega a ser mais do que uma mera escolha da qual me convenci, no entanto, em minha fantasia, essa será a cor de todas as paredes. No final, posso até mesmo me transformar numa nova verdade.
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Loucura nefasta
Misterio / SuspensoDivagações sobre a existência, convicções e sociedade em geral se alternam com fatos perturbadores, levando a condução deste suspense para rumos muito inesperados. Em meio a tudo isso, o que é loucura? O que é revelação? *****Costumo escrever apenas...