Eram Seis

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Raimundo bota pra fora tudo o que veio da noite passada. Está apoiado na privada, enfia o dedo na goela para facilitar a regurgitação e lá se vai mais um pouco. A garganta dói e sangra, busca só levantar, apesar de zonzo, e dar descarga no líquido avermelhado. Consegue, mas não sem manchar as coisas com seus dedos ensanguentados.

Lava o rosto. Encara seu reflexo no espelho. Foi seu décimo terceiro aniversário e a noite não poderia estar mais embaralhada em sua cabeça. Limpa o sangue debaixo do nariz, que sempre foi um elemento protuberante em seu rosto. Na escola fazem chacota por isso, bem como por suas orelhas de abano. Por isso sempre insistiu em ter cabelo longo, pra esconder a napa - além de tudo, adolescentes insistem em ter rosto desproporcional, faz parte - bem como as hélices.

Se dá uns tapas no rosto. A lágrima é inevitável. Diz a si mesmo que, antes que pire, é hora de botar as coisas em ordem.

Lembra-se de quando acordou. Isso por si só já foi atípico, pois não foi em seu quarto. Ele acordou na cozinha, sabe-se lá como foi parar no cômodo. Apesar de ter acordado no chão de azulejo com uma coberta e um travesseiro, não sentiu frio ao levantar e colocar seus pés sobre o piso no restante da cozinha. Estava sem seu celular. Ploc, ploc, ploc, fazia a torneira. Nem adiantaria tentar forçar mais, afinal há muito a família tem encarado a dificuldade de consertar essa merda. Na realidade, a mãe, que era o único ser na casa com poder aquisitivo, posterga e posterga. Os outros três irmãos que moram consigo eram pouco mais velhos e nenhum trabalhava ainda. Ploc. E, bom, os dois que já tocaram a vida fora de casa também não se preocuparam em consertar a torneira na casa da mãe. Ploc.

Além disso, tinha o relógio e o tic-tac habitual e o barulho da geladeira ligada, um som eterno tão ambiente que te faz esquecer que está ali.

Raimundo foi até a porta, puxou a maçaneta. Ou tentou. A porta estava trancada. Puxou com mais força e nada. Olhou para o relógio, eram seis da manhã. Por que estava trancado na cozinha às seis da manhã? Bom, era inconveniente bater na porta, chamar sua mãe e acordar a todos - será que era uma brincadeira de Serginho, Otávio e Douglas? Fosse como fosse, também era inconveniente estar trancado ali. A maior das inconveniências, por sinal. Por isso bateu com força na porta de madeira e gritou.

"Mãe!", disse. Bateu, bateu, ploc, tic tac.

"Mãe! Eles me prenderam na cozinha! Mãe!"

Continuou batendo. Não rolou, não houve sequer um movimento do lado de fora. Desistiu. Sentou de costas pra porta.

...

Eram cerca de 12h quando ouviu sua mãe falando do lado de fora. No meio tempo até lá, claro, tentou gritar mais, bater mais, mas nada adiantou. Tic tac, tic tac, ploc, tic tac, tic tac, ploc.

"Filho? Filho, você tá bem?", ela perguntou.

"Estou mãe. O que tá acontecendo aqui?!", ele retrucou, se lamentando sentado à frente da porta.

"É difícil explicar, querido... É difícil."

"Ao menos tente. É meu aniversário, mãe, é esse meu presente? Que merda é essa?"

"Por favor, Raimundo, não diga palavrões a essas horas. Só piora tudo. Não entende?"

"O que tem pra entender?"

"Raimundo..."

"O que, mãe?"

"É uma precaução...", ela diz.

"Precaução por quê, mãe?"

Ele ouviu os passos dela ficando cada vez mais distantes.

"Mãe! Mãe! Por favor, mãe!"

Só mais um conto distópico | Eram SeisOnde histórias criam vida. Descubra agora