Nada afasta essa lembrança de você.

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falcão noturno
s. um pensamento recorrente que só parece te atingir tarde da noite que circula alto durante o dia, que bica no fundo da sua mente enquanto você tenta dormir, que você pode ignorar com sucesso por semanas, apenas para sentir sua presença pairando do lado de fora da janela, esperando que você termine seu café, passando o tempo construindo silenciosamente um ninho.

Entro em casa, estranhando mais uma vez nos primeiros segundos não ver Ana aqui. Havia pedido um tempo para ela, precisava pensar. Pensar em mim, pensar no nosso relacionamento, pensar em tudo.  Ana entendia a minha necessidade desses momentos à sós comigo mesma, mas sei que no fundo, no fundo, ela fica magoada.

Na primeira vez que isso aconteceu, consegui ver em seu olhar a dúvida, a confusão e chateação que a invadiram. Agora, apesar de tudo, ela já está mais acostumada. Depois que a disse que precisava de um tempo sozinha, Ana me comunicou que ia viajar. Não me falou pra onde e nem se iria sozinha.

Ás vezes, começo a me arrepender do que fiz, mas sempre acabo me convencendo de que foi o melhor que eu pude fazer. Massageio a área do meu pescoço, tentando me livrar da tensão que eu sentia ali, porém sem sucesso. Era Ana que sempre conseguia curar essas minhas dores.

Respiro fundo, indo direto em direção ao banheiro. Ligo a torneira da banheira e espero, enquanto me despia por completo em frente ao espelho. Dispersa com meus pensamentos, quando volto a realidade a água está quase transbordando. Desligo rapidamente a torneira e me posiciono ao lado da banheira. Coloco uma perna de cada vez dentro da mesma. No momento seguinte, trago todo o meu corpo para debaixo da água. Estalo meu pescoço ao sentir um calafrio se espalhar por todo ele com o contato da água quente com minha pele quase fria.

Me lembro do seu toque. De como eu me arrepiava toda santa vez com ele. Lembro-me exatamente da primeira vez que eu e Ana nos beijamos, de como fui ao paraíso assim que nossos lábios se tocaram. Me lembro de como eu gostava de tê-la na minha boca.

Desperto de meus devaneios, abrindo meus olhos e dando de cara com uma visão meio turva do teto. Ao tentar levar ar aos meus pulmões, me engasgo com água. Arregalo meus olhos, raciocinando que eu estava completamente imersa de baixo da água. Me sento rapidamente na banheira, ainda tossindo.

Terminei meu banho o mais rápido possível e saí dali com uma toalha em volta do meu corpo. Visto minhas roupas íntimas e escolho um dos meus pijamas mais quentes. Janto macarrão com molho branco enquanto assistia a um filme antigo que passava em um canal qualquer da TV.

Enrolo um pouco na mesa, a fim de arrumar alguma desculpa para não me mexer no frio que faz. Assim que me levanto, meu celular começa a tocar. Ao olhar o visor, vejo seu nome brilhando na tela. Ignoro a chamada, porém o telefone volta a tocar. Após alguns segundos, hesitante, decido atender. Poderia ser algo sério. Engulo a seco ao deslizar meu dedo sobre a tela, atendendo a ligação.

— Vi! — é a primeira coisa que escuto ser dita, de forma entusiasmada, do outro lado da linha. Me apoio na mesa, continuando em silêncio. — Vitória...?

A imagem perfeita de Ana fazendo um biquinho enquanto esperava uma resposta minha se fez em minha mente. Eu estava errada. Poderia considerar ser algo sério, até porque Ana nunca insiste em me ligar, se eu não atendo da primeira vez, ela desiste. Mas sua voz rouca e embargada zeravam essa possibilidade, Ana estava bêbada.

— Vi? Estás aí? – o sotaque português ainda continuava com ela, apesar de vinte anos morando no Brasil.

Suspiro antes de respondê-la.

— Toma um banho e vai dormir, Ana.

— Mas... — não a deixo concluir a frase, encerro a ligação.

Fico algum tempo olhando fixamente para um canto aleatório, perdida em meus pensamentos novamente. Respiro fundo, negando com a cabeça e indo em direção à pia. Lavo a louça, escovo meus dentes e vou direto para a cama.

Volto a ler um livro que estou tentando terminar há mais de dois meses. Como sempre, meus pensamentos não me deixam concentrar no que estou lendo. Por onde quer que eu ande, aonde quer que eu olhe, nada afasta essa lembrança de Ana que sempre me vinham a cabeça.

Me deito na cama, me ajeitando debaixo das duas cobertas. Respiro fundo ao fechar meus olhos, já sabendo o que viria a seguir. Era a mesma coisa toda noite. A saudade e a culpa sempre me invadiam.

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