— Catarina, é a sua vez. — a recepcionista disse com um sorriso aconchegante nos lábios, voltando a prestar atenção na tela do computador que iluminava seu rosto.
Encarei a porta branca a minha frente, respirando fundo antes de depositar duas leves batidas na mesma, sentindo o gelado da madeira agarrar-se na ponta de meus dedos. Após ouvir o consentimento, girei a maçaneta e adentrei o consultório.
O lugar que deveria me deixar calma, sempre me deixava tensa. A sala era decorada em tons frios, era tudo tão claro que fazia minha vista arder. Atrás da mesa, onde Doutora Glenda se posicionava, uma grande janela permitia a entrada do sol matinal, fazendo com que seus cachos castanhos brilhassem em contraste com a luz. O seu semblante esbanjava uma leveza, que ao prender meus olhos em seu físico, eu sentia como se minha alma estivesse desprendendo de meu corpo. Seu olhar, antes que estava concentrado em organizar os envelopes de papel, se encontrou com o meu. Era um dos olhares mais puros que eu conhecia, mas o poder que eles tinham de me desvendar, me assustava.
— Bom dia, Catarina! - ela juntou todas as pastas em um bolo, largando por cima de sua mesa em mármore branco, passando a focar toda sua concentração em mim. — Como se sente hoje?
— Estou bem... — suspirei — e você?
— Estou bem, obrigada por perguntar. — disse entre uma risada contida — Tem algo que precisa destacar? — encarou-me por cima dos óculos, balançando uma caneta dourada entre os dedos.
— Me sinto vazia. — seus olhos me aprofundaram mais, como se quisesse analisar cada sílaba que saía de meus lábios, em seguida, balançou a cabeça em confirmação como um apoio para que eu continuasse. — Isso é sobre remédios novos, eu senti uma grande diferença. Eu sei que a intenção era tirar os pensamentos ruins da minha cabeça. Mas é que, eles tiraram tudo. Me sinto como um robô.
— Você teve alguma crise de ansiedade durante essas duas semanas?
— Não, é exatamente isso. Os pensamentos ruins se foram, não ficou nada. Literalmente, nada. As coisas que antes eram interessantes, agora não são nada. Eu só... faço.
— Entendi, vou reportar isso para o psiquiatra. — anotou em sua caderneta — Mas isso é comum de acontecer, um dos principais efeitos do medicamento é anular os sentimentos. Conseguiu completar aquele cronograma que montamos?
— Sinceramente? — torci os lábios. — Daquilo tudo, só consegui seguir os dias de lavar o cabelo. — eu ri, mas ela não achou muita graça. Apenas concordou e anotou em seu bloquinho.
— Eu entendo que se senti fria em relação ao seu dia a dia, mas preciso voltar a destacar que essa é só uma fase e você precisa se esforçar para passar por ela. Respeite seu limite, é claro, entenda seu corpo. Procure, talvez, alguma atividade que você sempre esteve disposta a fazer. Tente achar nela oque sempre te motivou. Tente focar suas lembranças em coisas que te faziam bem, não na sensação em si. Pensa nas coisas. — engoli em seco ao digerir suas palavras. Ela era tão singela, mas seus ditos entravam e vazavam pelos meus ouvidos. — Se sentiu ansiosa com algum evento esses dias? Hã... faculdade, talvez?
— Nada, nem com as provas. — ela estranhou, pois sempre soube de como as provas da faculdade me deixavam angustiada. — As vezes tenho a sensação que tudo em minha volta está pegando fogo, e eu to lá com um espetinho de churrasco na mão, esperando assar. — Doutora Glenda riu, mas me encarou de uma forma como se estivesse tentando decifrar algo, rapidamente voltou a anotar. Talvez minha piadinha não tenha sido tão saudável.
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Tormento
Horror'Catarina sempre sentiu que viveu seus dias faltando um pedaço. Presa na hipótese de ter nascido "quebrada", a jovem desde criança é submetida a tratamentos psiquiátricos na intenção de manter seu equilíbrio mental. Se sentir incompleta e falha, doí...