Parte III

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Atravessamos a ponte com cuidado, como sempre. Kyle demonstrou mais medo e nojo ao passar pelo pântano lamacento do que nas outras vezes. As tábuas velhas rangeram, e lascas de madeiras caíram na água cinzenta e suja.

— Lembra de quando investigamos a lenda da princesa que morreu aí? — Tento forçar a velha piada, mas Kyle não acha graça.

Tomando a perspectiva de visão de qualquer pessoa, minha casa era mesmo um buraco fedorento e assustador. Havia um bilhete escrito com as letras tortas da minha mãe grudado na porta.

Volto logo, cuidado

Senti um frio na espinha, acompanhado de um gosto amargo na boca. Aquilo só estava ali por conta do ovo, eu aposto. Não me permito ser tomada por outra emoção, só quero acabar logo com tudo, e depois sair para fazer qualquer outra coisa com Kyle.

— Entre. — Arranco o papel e o jogo de lado. — A casa é sua. — Me apressei em abrir as cortinas rasgadas da velha janela, melhorando a iluminação.

— Os gatos viajantes ainda estão por aqui? — Ele contou, ao todo, 9 gatos que ocupavam somente a sala de estar.

— Sempre.

— Espero que um dia você descubra porque eles passam por sua casa. Onde está o ovo?

Seguro sua mão e o levo até o quarto da minha mãe, onde está o ovo, dentro da redoma de vidro, em sua cama. Minhas bochechas esquentam quando seus dedos se entrelaçam aos meus com força ao vê-lo.

— Então era mesmo verdade! — Kyle se aproxima e analisa cada detalhe, a casca grossa e avermelhada, o tamanho absurdo. Seu nariz quase encosta no vidro, e mesmo feliz por ter conquistado sua atenção, preciso advertir.

— Cuidado, é melhor não chegar perto.

— Eu gostaria realmente de ver o bicho que vai sair daí.

Dois gatos malhados observam a cena do chão, as cabeças curiosas bem erguidas, e os olhos verdes me acusando de traição e descuido.

— Vamos, Kyle.

— Posso tocar?

— Eu não sei...

— Não vai acontecer nada, Maya.

Ele aguarda um pouquinho minha permissão, não digo que sim, pois não quero ser altamente irresponsável, mas também me sinto incapaz de dizer não e estragar tudo. Kyle precisa saber que sou legal, melhor do que qualquer outra amizade que ela possa ter na vida. Então, meu coração salta quando suas mãos se fecham ao redor da redoma e a tiram, uma mudança súbita no ambiente, que somente seria perceptível para uma bruxa, me atinge. Os pelos da minha pele se eriçam, os gatos que observavam mostram os dentes, e eu sei que alguma magia protetora foi quebrada.

— Kyle! — Me desespero para puxá-lo e impedir que entre em contato com o ovo, mas meu toque no seu ombro o assusta, e um mínimo contato descuidado torna-se um pesadelo. — Olha isso!

O ovo estava na ponta da cama, e nem mesmo tivemos espaço para tentar segurar, ele pende da pequena almofada vermelha que o comportava de pé na redoma e cai no chão, não de grande altura, mas o suficiente para danificá-lo. Nem tenho tempo de gritar, meus joelhos batem no chão e observo o estrago com lágrimas nos olhos. É minha culpa.

— Maya, por favor me desculpe!

— O que foi que você fez!?

Não ouso tocá-lo, sua casca não partiu, mas está completamente rachada, frágil a mínima tocadela.

Qualquer criatura viva que se formasse lá dentro, morreria. Não segurei o grito quando um liquido negro preencheu as linhas profundas de cada rachadura.

O Lar do Dragão, das Bruxas e dos Gatos | ContoOnde histórias criam vida. Descubra agora