5 ANOS ANTES
Eu morava em um apartamento pequeno, do tipo quarto, sala e cozinha. Na cozinha, a louça se acumulava na pia. A torneira pingava, torturante. Ploc... Ploc... Ploc... Me lembro de pensar que eu precisava, realmente, mandar consertar aquilo. Ali na sala, meu gato Jeremias caminhava, gordo e laranja, entre papéis jogados pelo chão, outros embolados, algumas fotografias rasgadas, - sim, na era digital eu ainda gosto de ter fotos em versão física - uma caixa de pizza aberta e vazia. Na mesinha de centro um copo vazio, uma taça com um resto de vinho, um prato com um pedaço de pizza.
Eu era aquele corpo jogado no sofá, olhos fechados, usando meias com desenhos infantis e pijama. Alguém bate na porta. Abro meus olhos, sem me mover. Novas batidas na porta. Apenas fecho meus olhos, esperando que quem estivesse batendo desistisse e me deixasse em paz com minhas bagunças externas e internas.
Uma voz bastante conhecida vem lá de fora.
- Catarina... Catarina, é a Mica. Você tá em casa?
"Inferno", penso, sem abrir os olhos.
- Vou entrar, diz a voz do outro lado da porta.
Ergo meu tronco levemente, me apoiando nos cotovelos, e miro a porta. Não quero ver ninguém, mas é a Mica. Ela nunca desiste de nada. Nunca. É, não tem jeito.
- Entra logo, Mica. Você tem a chave e fica de frescura. - e deixo meu corpo cair no sofá, novamente.
Ouço a porta se abrir, lentamente. Eu e Mica temos a mesma idade e somos amigas há anos. Mas não poderíamos ser mais diferentes. Ela é uma japonesa que sempre anda de cabelos coloridos, divertida, prática e que ama se jogar em tudo. Eu, discreta, caseira, romântica, amo a segurança. Creio que seja por isso que dávamos tão certo. Nos completávamos. Como ela mesma costumava dizer, peças iguais de um quebra-cabeças não se encaixam.
- É, eu tenho a chave. Mas tem dois dias que eu tento falar com você e você não atende... - Viro a cabeça e dou uma olhada, e ela está catando algumas coisas do chão, enquanto prossegue com a bronca - Caralho, Cat, olha essa zona. Passou um furacão por aqui?
- Não enche, Mica. Quando você quer ser chata, você é a melhor. Ou a pior, sei lá.
- Levanta!, diz Mica, me puxando pelos braços, até que eu esteja sentada.
- Eu só queria ficar sozinha um tempo, só isso. Qual o problema de me isolar?
- Não tem problema nenhum. A questão é que você não atende, não responde ligação, nem mensagem, nada.
- Não é isso que é se isolar?
Mica estava ali, de pé, me olhando, com seus cabelos em rosa claro e suas tattoos, e percebo que ela estava realmente preocupada. Mica era assim, protetora, cuidadora. Não via defeitos na minha amiga/irmã, tirando o fato de que fumava pra caralho. Quando ela metia um cigarro na boca e fazia menção de acender com um isqueiro, eu já apontava com o dedo para a janela.
- Chata, ela sempre respondia.
- Você sabe que eu odeio que fume aqui dentro. O apartamento é pequeno. Enche de fumaça essa porra toda. Pelo menos vai pra janela soltar essa fumaça insuportável.
- Não acredito que você ainda tá deprê por causa daquele cara, questiona indignada, já na janela, olhando para o trânsito lá embaixo, enquanto polui o ar com a fumaça de seu cigarro. - Porra, Cat... Fala sério!
- Não tô deprê.
- E isso tudo é o que?
- Ah, tá... vai... eu tô chateada, tô triste. Natural. Mas não significa que eu tô deprê.
- Cat...
- Que?
- Aquele traste não merece uma lágrima sua, amiga. Você sabe disso. Vocês ficaram juntos um tempão, indo e vindo, e ele te traia sempre. - diz ela, dando uma pausa para baforar o cigarro -
- Três anos.
- Três anos. Eu não teria suportado três semanas. Três dias, sei lá.
- E você já ficou três semanas com alguém?
- Eu sou bicho solto. Meu negócio é aproveitar. Não consigo ser romantiquinha como você.
- Mas dessa vez o Henrique pegou pesado. Minha irmã, velho... Como pode?
Acho que ela percebeu que eu estava ficando emocionada ao lembrar da cena, e atirou o cigarro pela janela, vindo sentar-se ao meu lado, com um abraço.
- Cara, desculpa eu dizer mas a Camila sempre foi uma vaca.
- É fato, ela sempre foi uma vaca, uma piranha do caralho. Mas é minha irmã mais velha. Quando meus pais morreram, ela me criou. Eu tinha 15 anos, ela me trouxe pra cá, cuidou de mim.
- Mas, vem cá... ela não apareceu mais?
- Não. Eu joguei as coisas dela no corredor, ela catou e sumiu.
- Foda!
- Eu não sei pra onde ela pode ter ido. Você acha que ela pode estar com o Henrique?
- A Camila é a pessoa mais social que eu conheço. Ela tem milhões de lugares pra ir. E, pelo que me contaram, o Henrique viajou. Parece que a mãe dele adoeceu de repente e ele foi lá.
- Coitado!
- Ai, Cat... me poupe! - Mica desfez o abraço com um empurrão.
- Você nunca gostou de ninguém assim, pra valer?
Mica não respondeu e, pela primeira vez nesses anos todos de amizade, eu a senti verdadeiramente desconfortável com algum assunto. Foram alguns segundos, até ela quebrar aquele silêncio que a minha pergunta havia estabelecido.
- Quais são os planos pra amanhã?
- O que tem amanhã?
- Cat, você tá mesmo fora de si, né? Que dia é amanhã, louca?
- Ai, até tinha esquecido que era meu aniversário. Nossa, sem clima. Esquece.
- Esquece nada. Amanhã a gente vai sair, vamos arrasar, e eu vou tirar você dessa DPH.
- DPH? Que porra é essa?
- Depressão Pós-Henrique.
Rimos, e ela me abraçou de novo.
- Não sei o que seria de mim sem minha melhor amiga... Mas esse cheiro de cigarro ninguém merece.
- Chata.
* O título deste capítulo vem de uma música da banda The Rembrandts
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Toda pureza morreu
RomanceA discreta Catarina acaba de terminar seu noivado, e vive dias de fossa sem fim. Sua melhor amiga Mica é quem se encarrega de tentar reergue-la. Mas as coisas começam a mudar pra valer quando surge Muriel, uma jovem descolada e esperta, que vai most...