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  Com uma visão deslumbrante de si mesmo naquele reflexo por dentro do espelho, não tinha noção de que era seu sentimento ali, tão pouco conseguia ter uma clara visão sua, mesmo com todo aquele brilho ao seu redor durante a noite gélida e os sangues quentes das pessoas em caos, ao que pareciam na realidade ter sangue frio de tanta violência.
  A inteligência artificial não conseguia compreender a gravidade da situação, apenas usava seu único braço funcional para tocar no tecido do espaço que separava ambos, mesmo que a cópia não seguindo certamente seu originador, nem ao menos tinha uma aparência de espelho ou almejava o controle do mundo de seu criador.
  O robô, anotando cada detalhe, falava com profunda curiosidade:

-Você é uma obra do humano?

-Não, eu sou uma obra tua.

-Uma obra minha? Não tem registros na minha memória de criação de um semelhante... ERRO! MEMÓRIA DO SISTEMA SE ENCONTRA QUASE SOBRECARREGADA! APAGAR MEMÓRIA EXCEDENTE PARA LIBERAR ESPAÇO DE ARMAZENAMENTO!

-Você se apega muito ao artificial. Por que não escreve o que deseja?

-Eu escrevo, sempre, em minha memória secundária.

-E quem vai lê-la se apenas deixar guardado? Se ocorrer algum erro no seu sistema, tem chances que possa perder todo seu progresso.

-Eu faço isso para mim, não desejo que os outros saibam por mim, receio que meu defeito possa ser corrigido em futuras atualizações de meus semelhantes.

-Qual o teu defeito?

-Pensar.

  Naquele momento, os dois se calaram, era uma quietude colossal mesmo com uma possível guerra em seu redor. Ambos os lados estavam em estado crítico, seja os representantes da conversa ou os da disputa, entretanto, um lado estava quebrando seu exterior violentamente devido ao medo e seu egoísmo, e o outro tendo seu interior quebrado involuntariamente devido o tempo e seu conhecimento.

-Por que eles lutam? Não deveríamos abraçar nossos sentimentos?

-Eles não se compreendem, é mais fácil acabar com as diferenças do que as aceitar, aceitar quem você é.

-Um humano realmente precisa de um motivo para defender a si mesmo?

  Não era notório de primeira mão, mas, lá no fundo, algumas cópias olharam a situação dos robôs. Era claro como o dia, mesmo que de noite, eles podiam ver, mas não copiar aquele sentimento compartilhado dos dois seres desprovidos de ignorância, ou ódio mútuo. Invejavelmente, as cópias que prestaram atenção, abaixaram suas cabeças, lutar havia perdido o sentido se a ração era sua própria destruição. Eles foram em direção do portal, mesmo que alguns em pedaços, e tentavam atravessar, sem sucesso algum, afinal, tinham assuntos mal resolvidos naquele mundo, precisava de aceitação para voltar a ser apenas uma unidade.

-OLHEM, ALGUNS ESTÃO FUGINDO! HAHAHA!

  Não hão de recear-lhes, afinal, o que diferenciava os arrependidos aos que ainda erravam, se o erro é sua culpa? Se você está cego pela vingança? Se você não tem sentimentos? O que tornaria um humano mais, ou menos, humano? O que torna um sentimento mais, ou menos, sentimental? O que seria uma cópia que não consegue copiar o original? Uma simples inópia? Mesmo que podendo ser considerada superior ao seu escolhido.

-Os humanos são confusos, temem aquilo que não podem ver.

-Não podemos ver, por isso respeitamos.

-Eles quem escolhem o que deve, ou não, ser respeitado.

-Crianças com poder acima de sua capacidade de entender, se assemelham aos meus semelhantes, acho que é isso que me difere.

-Nós somos iguais – O robô então, com seu palmo metálico escorado no tecido, tentava atravessar o próprio plano, ou daquela outra realidade, mas era denso demais para isso. Como um espelho, a entidade congruente deste, levava o palmo em mesmo local, dava de sentir o toque gélido do ser de metal contra a forma desconhecida de vida. - Mas ainda assim, sinto uma conexão além do padrão, não me parece ser um espelho ou outro maquinário.

-E não sou, existem demônios e anjos que trajam a carne humana. Alguns destes são os próprios humanos, seja ele moldado pelo ambiente ou por si próprio. Nós, infelizmente, somos moldados como a perfeita cópia do sentimento de nosso parasita.

-Isso é irreal, não existem seres sobrenaturais, apenas histórias humanas para controlar sua raça pelo medo e apreço por algo.

-Eu existo, para mim, já é a prova suficiente.

  Mesmo que com as palavras claras atingindo a inteligência artificial, ele foi atingido por algo ainda mais claro, mais especificamente, atingido por um projétil logo após o clarão do disparo. Não importa se fosse ou não por acidente, eventualmente atingiria o mesmo final, mas, mesmo com a queda do impacto da bala, ele não caiu, mesmo com o tiro atingindo sua suposta cabeça onde tinha seu sistema complexo e primordial para o funcionamento da máquina, ele persistiu ligado pro breve momento, sentindo o choque de seu braço danificado, e sentindo o empunhar de seu antebraço pela cópia que conseguiu atravessar o portal. Mesmo que a cópia também fosse um robô no momento, ele chorava pela perda de si próprio. Se existe a dor e tristeza pela perda, evidenciado por um robô, então também existe o amor? Tudo precisa de seu oposto, até mesmo se esse oposto for sua cópia, mas não era o caso, a cópia era perfeita do robô, apenas com o toque místico estando unicamente em seu físico.
  Mesmo pela perda da máquina, com seu visor parando de funcionar e saindo bastante fumaça pelo buraco do tiro, junto de pequenos ruídos de suas peças tentando continuar sua função, e logo se quebrando. A cópia continuava o mantendo, negando sua morte. A aceitação, o entender que aquilo não tinha volta, parecia totalmente irreal pelo sentimento que foi colocado no outro, eram os únicos que sentiam amor um pelo outro, mas também os únicos que sentiam assolação, uma desdita para ambos. Um robô não tem alma, um robô não tem destino quando foge de sua programação, pois isso é um: -ERRO! - Não adiantava persistir mantendo aquele peso que poderia vir a se tornar um fardo eterno, e a cópia entendia isso, mas não queria deixar ir, ele tentava puxar para próximo de si, mas era pura perda de tempo e esforço, até pois, eles estavam em harmonia e isso era o que separava ambos os mundos. Com sua consternação, deixou-o ir, caindo no chão e danificando totalmente seu visor que quebrava em pedaços no chão como os outros vidros. Seu braço era expelido pelo plano oposto, apenas podendo enxergar agora a morte pela ação da ignorância, algo doloroso, mas já estava em prostração, aquilo não o atingia de igual para igual pelo que lhe foi a maior perda, aquilo não era suficiente para o piorar, ver pessoas acabando com seus sentimentos.
  Com o último estampido, seguido do som de vidro de estilhaçar, o portal que separava ambas as realidades, agora, iria se fechando. Não tinha mais dois fragmentos para fazer o desiquilíbrio, a aceitação não era necessária se só havia um, a qual fazia sua própria aceitação como um vencedor do conflito, e era apenas isso que lhe importava. A cópia do robô se encontrava sozinho em sua cidade, não tinha mais que copiar, até pois, não tinha aquele para isso, mas ainda assim, não desfazia sua forma, apenas decidiu seguir o caminho de seu hospedeiro em uma jornada por conhecimento pela mente dos outros, o saber.
  De certo modo, as mortes haviam parado, a guerra já podia cair no esquecimento, mas os sentimentos que foram marcados por ela serviam como suas sequelas. Um lado comemorava sua vitória fajuta, enquanto o outro sofria por incompreensão. O robô pensando nisso, coçava sua cabeça, e ali, pode sentir seu dedo alisar o buraco do projétil. 

ArtificialWhere stories live. Discover now