-Baldric

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A lua já estava tão alta no céu que Baldric já não podia vê-la de sua janela, através das cortinas de seda. Imóvel em sua cama, ele a havia visto surgir e então flutuar além do alcance de seus olhos. As horas da noite se arrastavam madrugada adentro e ele, no alto de sua isolada torre, não conseguia pregar os olhos apesar de ter passado o dia mergulhado em terrível, letárgica sonolência. Pouco havia dormido também na noite anterior. E na anterior. Costumava dormir muito mal, via de regra. Passava seus dias, estes abarrotados de afazeres, contando os segundos para poder dormir, mas raramente encontrava nos rígidos deveres de herdeiro maior daquelas terras brecha que permitisse alguns minutos abençoados de descanso, um cochilo que fosse. Por vezes cochilava em cima de suas tarefas, ou durante os sermões de seu tutor, ou então durante as missas. E a cada minuto que passava lutando contra suas pálpebras pesadas, zangava-se da própria insônia e jurava para si mesmo que poria fim nesse disparate; quando fosse noite, dormiria. Exausto como estava, não haveria de ter dificuldade.

E no entanto, assim que o castelo mergulhava em silêncio e sombras, os ruídos noturnos despertavam as palpitações inquietas de seu coração. O vento parecia assobiar, trazendo-lhe cantigas de pesadelos como que cantaroladas por entre lábios fechados. Os olhos se arregalavam para se adaptar à escuridão. Convencia-se, ao forçar as vistas a identificar cada silhueta na penumbra, de que o quarto estava vazio. A convicção, no entanto, lhe faltava. Ao seu redor, sombras dançavam em formatos diversos, escondendo as origens dos ruídos estalados, cada vez menos espaçados.

"É a madeira," pensava, tentando conter a inquietude e a vontade insensata de levantar e enfrentar o que quer que fosse. Diziam que madeira antiga estalava durante a noite. Não havia ninguém ali com ele, àquela altura, àquela hora. Como poderia haver? O aposento mais próximo ficava além de uma escadaria e um longo corredor. Ele seria capaz de ouvir os passos com muita antecedência, já quando se subisse o primeiro degrau - ou ao menos assim gostava de pensar.

No entanto, o estalar insistente acima de seu teto se fazia indubitavelmente presente, acordando dentro dele uma irritação igualmente persistente que se apressava em devorar o que quer que restasse de seu sono. Os ruídos rítmicos meticulosamente espaçados pareciam viajar acima da cabeça de Baldric num percurso que ia e vinha num labirinto oculto. A fim de impedir-se de imaginar pés que caminhassem sobre sua cabeça naquele exato momento, o jovem tentou pensar em ao menos três explicações lógicas e enfadonhas para aquela poluição sonora. Quem sabe houvesse algum ninho sobre a torre, talvez pássaros tivessem deixado cair algo que quicou repetidamente. Quem sabe os ratos tivessem cruzado novos limites. De todo modo, enquanto desperdiçava as preciosas horas em que deveria estar descansando buscando explicações para um ruído insignificante, seu livro - o mesmo do qual necessitava para concluir a tarefa que seu tutor lhe havia passado - seguia desaparecido. Que haveria de dizer na manhã seguinte, quando o tutor lançasse perguntas acerca da leitura que ele jamais pôde terminar? E, pior, que haveria seu tutor de relatar a seu pai, a seu respeito? Os últimos relatórios já não haviam agradado ao Conde, e o Conde não era alguém que se queria ver descontente.

Não era fácil ser o herdeiro. Por vezes, Baldric chegava a pensar que seria capaz de dar qualquer coisa pela sorte de ter tido um irmão mais velho. Quem sabe assim, não circulariam por aí tantos rumores absurdos a seu respeito, tantos sussurros cuidadosos. Os criados comentavam que ele era um changeling; uma criança trocada. Ou que sofria de alguma doença da alma. Diziam-no crendo que ele não ouviria, que não saberia. Acreditavam, ainda, que ele não sabia, mas estavam errados. Ele estava plenamente consciente do que se pensava dele. De todas as expectativas que ele falhara em atender.

Os ruídos, que se haviam aquietado após um percurso específico no teto, tornavam a ressoar pelo quarto de outro modo silencioso. Em vez da batida rítmica, um arrastar cauteloso seguido de pequenos estampidos abafados; emudecidos no que parecia ser madeira antiga. Um rosto toma forma na mente de Baldric. Tal rosto lhe arranca o fôlego; faz com que ele engula o ar em contido pavor.

A canção das sombrasOnde histórias criam vida. Descubra agora