Encolhida contra os muros de pedra da masmorra cinza onde crescera, Hildegarde abraçava os próprios joelhos, os olhos fixos na única janela, que se situava bem acima dela, mesmo se estivesse de pé. Em breve, quando pudesse ver a lua, ela se levantaria. Mas, por enquanto, sua amiga prateada ainda não havia dado o ar de sua graça, e a noite estava fria. Fria o suficiente para que Hildegarde preferisse esperar mais próxima do chão, as pernas próximas do corpo, os cabelos descendo por seus ombros agasalhando os braços. Sem perceber, cantarolava para matar o tédio e o tempo. Não havia mesmo muito mais o que fazer, àquela altura. Cada canto daquele calabouço já era velho conhecido da menina. Cada pedra nas paredes, cada rachadura, cada mancha deixada pelo tempo. Já havia, nos tenros anos de infância, explorado todo e qualquer detalhe que havia para ser explorado. Aprendera a contar e a entender como funcionavam os números usando as pedras que a encerravam - assim sua velha tutora lhe havia ensinado. Sua vida havia sido sempre assim, encarcerada desde que se entendia por gente sem saber ao certo o motivo. Se sabia ao menos quem era, era devido à caridade da velha Walburga, que partilhara de seu cárcere em seus primeiros anos e que ainda então era sua única amiga, a única que zelava por ela. Ali, no alto daquela torre, longe dos olhos de tudo e todos, a boa senhora lhe havia dado um nome e ensinado a falar e a cantar. Pois embora todo o castelo acreditasse que a velha era muda, Hildegarde sabia que ela falava, ainda que ninguém mais a pudesse ouvir. Apenas Hildegarde conhecia sua voz, de ouví-la e apreciá-la noite após noite a entoar-lhe cantigas de ninar das mais diversas, trazendo histórias de um mundo distante. Conhecera, sem deixar seu calabouço, vários reinos por meio de canções: um reino cujo castelo estava acima das nuvens, outro reino abaixo do solo e um terceiro que se estendia no horizonte azul. E quando perguntava, em sua curiosidade infantil, por que a velha senhora havia deixado para trás tantos lugares sublimes, recebia como resposta um sorriso e uma frase simples que nada explicava: "ora, alguém precisava cuidar de você."
Certa noite, ao acordar, a menina viu a velha encarapitada bem no alto da parede crocitando para a janela. Não entendeu bem como foi que aquela figura tão frágil conseguiu chegar tão longe e tampouco como conseguiu descer de volta, mas há coisas que não se questionam; mesmo então, a menina já sabia disso. Ao chegar de volta ao chão, a velha Walburga aninhava junto ao peito um corvo encolhido. Aproximou a ave da criança de modo que a menina pudesse ver o próprio reflexo nos olhos lustrosos da criatura.
"Olhe bem, criança. É presente de um velho amigo meu, que também lhe tem muito apreço. Olhe, para que nunca esqueça quem é e nem quem sou."
Dessa noite em diante, Hildegarde jamais tornou a se esquecer de coisa alguma. Não havia detalhe, por mais insignificante que fosse, que lhe fugisse à memória. Não fosse por isso, talvez ela pudesse esquecer-se das peculiaridades de seus aposentos para então voltar a se distrair explorando-os, mas não era o caso. Tudo permanecia tão fresco em sua mente quanto no dia em que ela percebera pela primeira vez.
Quando Hildegarde atingiu certa idade, a velha passou a lhe emprestar suas chaves e assim permitir que ela transitasse com maior liberdade pelas passagens escondidas do castelo. A única regra era que jamais deveria ser vista ou percebida por mais ninguém. Para sua própria segurança, deveria ser invisível por enquanto, se não quisesse sofrer com os acessos de fúria do Conde.
Hildegarde só sabia que o cruel dono daquelas terras era seu pai porque a velha Walburga lhe havia contado, mas jamais ousaria chamá-lo como tal. Na verdade, jamais ousaria dizer ao Conde coisa alguma. Por que deveria, se ele era o horror de todos com quem interagia?
Sabia, no entanto, que ele a notava. Que sabia de suas pequenas incursões e de cada coisa a mais que fazia. A cada vez que ela ousava além do que ele consideraria aceitável, as consequências não tardavam a vir. Logo no dia seguinte, as chaves eram tomadas da guardiã e a menina era deixada dias a fio isolada em sua masmorra, sozinha, faminta e sujeita a quaisquer adversidades temporais. Contudo, com o tempo, ela passou a perceber os padrões de seu algoz; aquilo que o ofendia e aquilo que não o ofendia. Percebeu que ele se zangava quando ela tentava fugir ou quando chegava muito próximo de se revelar, mas não se importava que ela roubasse da cozinha ou dos irmãos nem que ela manipulasse uma situação ou outra a seu favor. Não se importava que ela assistisse às aulas do meio-irmão e que por vezes chegasse a ajudá-lo, sem que ele soubesse, nas tarefas quando apresentasse dificuldades - o que aliás, acontecia com certa frequência. Certa vez, enquanto se escondia detrás dos muros da cozinha para roubar comida, Hildegarde acabou por acaso descobrindo que a Condessa seria envenenada - uma das auxiliares de cozinha tinha a esperança que o Conde então desposasse sua filha, em quem ele havia feito um filho na ocasião da última fogueira. A menina então imaginou que caso se mostrasse útil, talvez o Conde evitasse prendê-la, e acabou por salvar nesse dia a vida da Condessa, deixando rastros para que o Conde soubesse o que fora evitado, por quem e ainda quem seria a traidora.
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A canção das sombras
ParanormalVia de regra, Baldric dormia muito mal. Todos os dias, zangava-se da própria insônia e jurava para si mesmo que poria fim nesse disparate; quando fosse noite, dormiria. Exausto como estava, não haveria de ter dificuldade. E no entanto, assim que o c...