Capítulo Único

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- Vem, Thiago! Até parece que você não quer brincar comigo.

- Mas já tá ficando tarde, Jú...

- A mamãe não vai brigar se ficarmos um pouquinho mais.

- Você sempre diz isso e eu sempre acabo tomando bronca.

A menina riu. Os cabelos negros, presos no estilo maria-chiquinha, voavam ao sabor do vento. Júlia ria do irmão mais velho, mas não por maldade: ela, de fato, só queria aproveitar um pouco mais de tempo com Thiago.

O rapaz, por sua vez, parecia meio incomodado com o avançar do tempo. Não que fosse muito tarde, ainda eram 16hs, mas sabia que seria repreendido se não chegasse em casa até às 18hs, e como a casa ficava meio longe do local onde brincava com a irmã, tinha que pensar no transporte de volta e calcular muito bem a hora. Contudo, considerou que mais meia hora de brincadeiras não faria tão mal assim. 

- Está bem: mais meia hora e pronto!

- Quando foi que você ficou tão chato assim? – Ela resmungou, zombeteira.

- Eu? Chato? Você já vai ver quem é o chato aqui! – Ele disse, enquanto corria na direção da criança de 9 anos. Júlia fugia do irmão, o vestidinho azul balançando enquanto ela corria.

O rapaz de 17 anos corria no encalço da pequena, que ria e soltava gritinhos enquanto despistava o irmão mais velho. A brincadeira pareceu chamar a atenção de algumas outras pessoas, mas ninguém reclamou com os irmãos. Quando Thiago finalmente conseguiu agarrar a menina, ele a envolveu entre os braços e começou a fazer cócegas na barriga da criança, que se contorcia tentando escapar enquanto gargalhava alto. Júlia finalmente se livrou das cócegas, e, arfando, deitou-se na grama tentando recuperar o fôlego. O rapaz fez o mesmo, deitando-se ao lado da criança enquanto observava o céu.

Ele distraiu-se olhando o céu límpido: o sol amarelado do fim da tarde contrastava com o azul puro. Era um dia realmente bonito, do tipo que dava vontade de fotografar ou mesmo fazer um desenho. Thiago pensou nisso, e decidiu retratar aquele momento quando chegasse em casa, para ter algo além das memórias. Virou-se e foi pego pelos observadores olhos castanhos de Júlia, que observava o irmão mais velho com um interesse genuíno. 

- Que está olhando?

- Você. Você quer desenhar, não quer? Você sempre faz essa cara esquisita de quem está no mundo da lua quando quer desenhar.

- Eu não faço nenhuma cara esquisita!

- Faz sim: você fica com os olhos parados e fica mordendo o canto da boca, parece até um zumbi. – Ela disse, soltando uma risada curta que logo morreu ao notar a expressão do irmão. – Desculpa...

- Tá tudo bem, Juju.

- Mas você tá triste...

- Não, eu não estou. Só fiquei pensativo, só isso.

- Você lembrou, não é?

- Eu sempre lembro, Jú. Sabe que não tem como eu não lembrar...

- Eu sei. Desculpa...

- Hey, olha pra mim. – Ele disse, sentando-se e olhando os olhos da irmã que já começavam a ficar com lágrimas – Tá tudo bem, Jú, não tem problema. Eu não tô bravo ou chateado, eu só lembrei.

- Mesmo?

- Mesmo. Por mais que você tente, você não consegue me deixar realmente bravo contigo, pirralha.

- EU NÃO SOU PIRRALHA! – Ela berrou, pulando em cima do irmão mais velho pronta para fazê-lo se arrepender por tê-la chamado daquela forma. Ele esperava por isso, sempre tinham sido assim: toda vez que Júlia ameaçava chorar ou ficar triste, Thiago arrumava alguma forma de irritá-la ou fazê-la rir, o que viesse primeiro. Normalmente ele acabava apelando para o gênio forte da irmã mais nova, como naquele momento.

Os dois brincaram por mais um tempo: correndo, rolando na grama e brincando de pique-pega. Se divertiram ao ponto do mais velho acabar perdendo a hora e, quando deu por si, já passava das 17hs. A mãe, Dona Carmem, já deveria estar arrancando os cachos castanhos da cabeça àquela altura. Ele se conformou com a bronca que receberia: de nada ia adiantar se preocupar agora com isso, então apenas aceitou que teria que dar muitas explicações e ouviria um longo sermão do mesmo jeito. Talvez conseguisse se livrar de um castigo se o pai, Seu Antônio, estivesse em casa. Só talvez.

Quando terminaram a última partida de pique-pega, Thiago arrumou a mochila. Júlia entendeu o gesto: havia chegado a hora da despedida. Era sempre a mesma coisa: ele vinha, passavam a tarde juntos, mas logo que o sol começava a ameaçar se pôr, ele ia embora. Sabia que era por causa da mãe, sempre preocupada, especialmente depois do acidente. Júlia apenas suspirou, aceitando a realidade.

- Você precisa ir, né?

- Sim, Juju. Mas eu volto daqui uns dias: talvez demore um pouco mais porque a mãe provavelmente vai me dar uma bela bronca e eu vou ter que andar na linha por uns tempos.

- É, eu sei.

- Mas eu sempre volto, não volto?

- Eu sei, eu sei. Vou ver se consigo trazer o Babaloo na próxima vez que vier me ver.

- Então eu vou tentar lembrar de trazer uma bolinha para brincarmos nós três na próxima vez!

- Beleza! Não vai esquecer, tá bem?

- Eu nunca esqueço. Até, Juju. – ele se despediu da criança, abraçando-a carinhosamente. A menina retribuiu o abraço com o máximo de força que conseguia, mas ainda assim ele quase não a sentia mais.

Quando se afastaram, ela lhe sorriu uma última vez dizendo “Até, Titi”, e saiu correndo, desaparecendo por entre as árvores do cemitério de Nova Esperança. Thiago apenas se virou e caminhou em direção ao portão do local, lembrando-se mais uma vez da tarde em que a irmã tinha morrido.

6 anos já haviam se passado desde a morte de Júlia: a menina e o irmão estavam brincando com o cachorro da família, Babaloo, quando a bolinha do animal acabou parando no rio próximo a casa. Era época de chuvas, a correnteza estava forte e o cãozinho acabou caindo na água e Júlia foi logo atrás. Thiago ainda tentou impedir a irmã, mas ela era mais rápida que ele. Desesperado, ele correu até os vizinhos para pedir ajuda. Foi o velho Seu Geraldo quem acudiu o menino de 11 anos, que berrava aos prantos que a irmã estava se afogando.

Junto com outros vizinhos, eles tentaram de tudo para socorrer a menina e o animal, mas nada pôde ser feito. Mesmo com a ajuda da polícia, o corpo do cão foi encontrado em meio às pedras e o de Júlia fora achado ainda mais longe, apenas 2 dias depois. A comoção havia sido imensa e não houve na cidade quem não desse apoio ao casal e ao menino, que visivelmente demonstrava culpa pelo ocorrido.

Anos mais tarde, com ajuda de uma terapeuta que a família conseguiu na rede pública de saúde da cidade, Thiago já conseguia entender que não havia sido sua culpa. Fizera tudo o que podia para salvar sua irmã e pular no rio apenas o teria matado também, triplicando a dor dos pais. Tentava lembra-se disso constantemente e, agora, já conseguia aceitar melhor a tragédia. 3 anos após a morte da irmã, ele dirigiu-se pela primeira vez sozinho ao cemitério: queria ficar um pouco com a menina e, quem sabe, desculpar-se. Foi então que descobriu que, por algum motivo, conseguia ver a irmã mais nova, brincar e conversar com ela como se ela ainda estivesse ali, presente.

Desde então, ao menos duas vezes por mês, Thiago rumava sozinho para o cemitério da cidade e passava a tarde com o espírito da irmã mais nova. No início, houve quem dissesse que o rapaz era maluco e precisava ser internado: vizinhos e outros moradores tinham ido falar com Dona Carmem sobre as visitas do rapaz ao cemitério, alertando-a sobre o filho. Porém, Seu Antônio foi categórico: não iria internar o menino, pois aquilo não era maldição alguma. Seu filho tinha um dom e se ele podia conversar com a irmã, que o deixassem em paz. Ninguém mais tocou no assunto: Seu Antônio tinha uma espécie de respeito entre o povo da cidade quando se tratava de espíritos e vida após a morte.

Foi lembrando-se de tudo isso que o rapaz caminhou por entre as árvores do cemitério, chegando ao portão e dando de cara com o responsável pelo lugar, Seu Tobias. Thiago cumprimentou o velho Tobias, avançou para fora das grandes negras e antigas do portão e seguiu caminho até o ponto de ônibus, cantarolando baixinho a música favorita de Júlia enquanto pensava em como apaziguar a fúria da mãe por chegar em casa quase anoitecendo.

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