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        Um barulho de porta batendo atraiu sua atenção. Não conseguia enxergar um palmo a sua frente. Estar de olhos abertos ou fechados não fazia diferença. Podia sentir a escuridão envolvendo e cobiçando seu corpo trêmulo.

        Sentiu algo úmido e quente embaixo dos pés descalços. Algo que não era nada agradável. Estremeceu contendo-se para permanecer o mais quieta possível. A respiração estava ofegante. Parou, procurando por algo a sua volta, com uma mão tapando a boca e a outra tateando o vazio com ansiedade e medo. Podia jurar que uma corrente de vento cortou seu lado esquerdo, como se algo ou alguém tivesse se deslocado rapidamente naquela direção. O coração martelava dentro do peito e o estômago parecia querer despejar o que almoçara. Por duas ou três vezes sentiu algo pesado subir pela garganta e empacar quase na boca. Um sabor ácido ao paladar. Não iria conseguir se conter por muito tempo.

        Um dedo gelado e afiado subiu por sua espinha. Começou abaixo da lombar e subiu até sua nuca, fazendo seu corpo se dobrar na direção oposta. Um guincho saiu de sua boca, alto e gutural, imerso em terror e pavor. A respiração ficou descontrolada, já não temia fazer barulho. O que a estava perseguindo, feito uma presa, já sabia onde ela estava. Nada podia fazer além de esperar pelo fim. Pensou no pai, na irmã mais nova e nas coisas que desejava ter feito. Sentiu-se exposta, mesmo no escuro. Não queria estar nua. Não queria estar ali.

        Sentiu uma pequena onda cobrir parte do pé, o mesmo líquido quente. Agora sentia-o mais vistoso, grudento e apavorante. Não era água. Ela não se aderia assim a pele. O que quer que fosse, agradeceu por não conseguir ver. Chorava aos soluços, entregue como uma menina amedrontada num quarto escuro, gritando por socorro.

        O coração saltou novamente. Sentia algo fungar em seu pescoço, algo que expirava um ar quente. Sentiu a pele queimar, como se fogo lambesse seu ombro. Um beijo infernal alcançou seus lábios, fazendo a gritar com todas as forças. A voz não saiu, só um arquejo, pois, no mesmo instante, algo a acertou em cheio entre as pernas. Sentiu sangue escorrer pela coxa direita, depois pela esquerda e quando alcançou o tornozelo compreendeu que estava pisando numa poça sem fim de... sangue. Sentiu os joelhos dobrarem e, no instante seguinte, já estava caída. Algo puxou seu pé, fazendo-a parecer uma boneca de pano. Arrastou consigo o mar vermelho no qual estava estirada. Seus cabelos formaram um esfregão, como o que um faxineiro usaria para esfregar um pátio de colégio ou chão de shopping.

        - Me solta... - uma fraca voz, rouca e impotente, deixou sua boca junto dos últimos lampejos de esperança. Era o fim! E seria doloroso!

        Sentiu a velocidade aumentar e não conseguiu controlar o corpo. Mal percebera que estava no meio do ar quando deu de encontro violentamente com algo que parecia ser a parede. Sentiu o pulso latejar. Quebrara-o com o impacto. Um dos joelhos também parecia ser perfurado por uma broca. Algo escorreu pelo seu nariz e por fim, não suportou, expulsou uma torrente de ácido estomacal e o que parecia ser o resto do lanche de mais cedo. Estava de lado, arquejando e tremendo, sozinha e morrendo. Fechou os olhos, ou eles já estavam fechados? Não sabia. Esperou pelo golpe final ou pelos demais que a levariam ao derradeiro. Esperou e esperou...

            Abriu os olhos e encontrou o branco sem graça do teto. O ventilador girava debilmente. Sentiu o calor da cama e o suor que a inundava. Fora mais um pesadelo, o terceiro na mesma semana, exatamente igual. Sentiu o ombro lhe queimar enquanto se levantava desajeitadamente. Aquilo era novo. Foi tropeçando até o banheiro da suíte, abriu a porta com um empurrão com o antebraço e se deparou com o espelho da grande pia de mármore. Puxou a gola da camisola até expor o ombro por completo. Estava preto e amarelo, quase verde, com um hematoma gigante. No meio, emoldurado por aquela visão de dor, discerniu o que parecia ser um beijo. Estremeceu.   

O BeijoOnde histórias criam vida. Descubra agora