- Garota, não quero você entrando mais no meu quarto, ouviu? – gritou para a irmã que estava em algum dos cômodos de baixo. Não queria ela voltando a mexer nas suas coisas, ainda mais no seu diário.
Anne era a filha mais velha de um casal de escritores. O pai era um físico de certo renome, mas não possuía o tipo de renome que gostaria de ter. Era aclamado pela crítica popular, mas ignorado pela comunidade científica. A mãe, uma psicóloga com tendências alcoólatras, que sempre tinha dois ou três livros no "top 100 das obras de autoajuda" e, alguns momentos de total reclusão social. Ambos passavam a maior parte do tempo trancados nos escritórios que mantinham, separadamente, na casa. A garota nem se lembrava da última vez que vira o da mãe e, o do pai, vira só duas ou três vezes a vida toda. Uma quando se mudaram, outra quando o pai esqueceu a porta aberta e, a última vez quando procurou dinheiro nas coisas dele, escondida.
Sophia, sua irmã mais nova, era uma garota de onze anos. A garota mais irritante e chata do mundo, na opinião dela, que com seus dezesseis anos sentia-se uma estranha no ninho. Esperava um ônibus que nunca passaria naquele maldito ponto em que estava. A caçula parecia sempre determinada a tirar sua paz e atrapalhar seus planos. Quando tinha combinado com a amiga Victória de que iriam ao cinema escondidas, ela contou tudo à mãe, que acompanhada de uísque e antidepressivos, deixou-a de castigo por dois longos meses. "Maldita vadiazinha".
- Agora dá para você cuidar da sua irmã e me deixar terminar aquela maldição de livro? Alguém nessa casa tem de vender algum que seja!
- Queria que ela não tivesse nascido! – gritou antes de subir batendo o pé em cada degrau.
- Eu também não queria! Aliás, que bom seria se nenhuma das duas tivesse nascido, nunca! – já estava acostumada e sabia quando era a mãe ou o Johnny falando.
Anne sabia que os pais não estavam vendendo muitos livros e, vendiam cada vez menos. Ela tivera de deixar o balé. Sophia, as aulas de natação e as aulas de violino. Ouviram numa noite qualquer a briga que os dois tiveram, quando o pai foi dispensado pela editora em que estivera nos últimos dez anos. Deu um pulo repleto de pavor quando um barulho de vidro estilhaçando ecoou pela casa. Depois, os dois choraram audivelmente feito crianças. Adormeceu tentando esquecer aquela noite.
Abriu o diário, buscando a última folha em que marcara o papel com a caneta. "Quatorze de agosto... Eu não queria ter uma irmã, muito menos os pais que tenho, querido diário. Se eu pudesse fugir, ir embora e seguir meu caminho, ter minha vida, iria sem nem pensar duas vezes. Quando a vovó morreu, perdi tudo que eu tinha de bom. Agora sou só eu e... você."
Uma lágrima caiu débil, marcando o papel onde o impacto ocorreu. A mancha expandiu-se, enrugando aquele pedaço.
- Vovó... – a voz era fraca, quase um sussurro.
O ocaso não demorou a chegar. Annelise adormecera com o diário apoiado na barriga e, uma das mãos ainda tinha a caneta entre os dedos.
- VOCÊ! – ela tentou responder, fugir, escapar, reagir. Não conseguia. – VOCÊ! – outras vozes uniam-se ao coro. – VOCÊ!
Tentou falar, sentindo-se sufocada. Levou a mão até onde podia, sendo impedida por um grilhão pesado. Não conseguia respirar, precisava de ar.
Fez o máximo de força que pode, tentando levar o pescoço para mais perto. Encontrou um frio mórbido quanto tocou sua garganta de mármore ou morte.
-HAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHA! – uma risada cortou seus tímpanos, fazendo-a encolher tremendo como se tivesse sido chutada nos seios.
Abriu os olhos, mas quase não via nada. Enxergou as mãos repletas de feridas e cortes. Os pulsos estavam em carne viva, justamente onde os grilhões a acorrentavam. Tentou alcançar a cabeça, que latejava como se uma broca estivesse escavando suas têmporas.
- Ela é nossa! – uma voz feminina gritou em júbilo maquiavélico.
- É! É toda nossa! – outra, mas agora irreconhecível. Rouca como um rosnado, afiada feito uma faca.
- Vai morrer sofrendo e pedindo clemência. É uma pena, mas vai descobrir que não há clemência para onde vamos levá-la!
- NÃO! – disse por fim, sentindo o gosto de sangue aflorar em sua boca como uma rosa afloraria na Primavera. – Não, por favor? – chorava, sentindo uma dor aguda na costela quando tremia com os soluços.
- Você acha que encontrará piedade aqui? – a voz caçoava dela. – Acha mesmo? Então que isso te faça entender de uma vez por todas que... VOCÊ É NOSSA, ANNELISE! – sentiu a maior dor que já sentira. Algo estava rasgando-a por dentro, fazendo-a gritar com todo seu desespero reunido. Sentiu as forças se esvaírem, mas conseguiu ver um contorno embaçado. – NOSSA PARA FAZERMOS O QUE BEM ENTENDERMOS, entendeu?
Ela gemia sentindo que o fim estava próximo, esperando para que seus sentidos se esvaíssem até que até sua vida a deixasse.
- Não a queremos morta. Não agora. – sentiu dedos correndo seu ventre.
Piscou os olhos marejados. Tudo estava ainda mais embaçado e, a rosa parecia ferir o céu de sua boca com os espinhos, como sua língua e gengivas. Quando achou que tudo iria terminar, acordou com o pai ao seu lado, chorando e pousando uma mão em seus cabelos.
- O que foi? – perguntou sobressaltada, aterrorizada com o pesadelo que tivera e com o susto de acordar com o pai logo ali, ao seu lado. – O que aconteceu, pai?
- Sua mãe... Sua mãe... Ela teve uma overdose... – começou a chorar, soluçando e deixando escorrer secreção de suas narinas. Estava cheirando a bebida. A casa estava tremendamente silenciosa, exceto pela dor do pai e por seu coração, que parecia um martelo contra uma bigorna.
Annelise, porém, não chorou uma só lágrima. Ela só queria pegar o maldito ônibus para qualquer lugar.
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O Beijo
HorrorUm barulho de porta batendo atraiu sua atenção. Não conseguia enxergar um palmo a sua frente. Estar de olhos abertos ou fechados não fazia diferença. Podia sentir a escuridão envolvendo e cobiçando seu corpo trêmulo. Sentiu algo úmido e quente emba...