O réu e o algoz

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Ano 1378.

Caía a tarde em uma próspera cidade. Cercada por grandes muralhas, era um lugar movimentado e barulhento, considerado moderno para os padrões da época. Com um comércio efervescente e um índice de mortalidade razoável, os habitantes se sentiam seguros e confortáveis. A grande peste ainda não havia atravessado os portões então seus cidadãos consideravam que Deus abençoava a próspera cidade e seus residentes. A única coisa que tirava a paz aparente do local era a criminalidade. Mesmo com uma população pequena, delitos eram uma realidade. E alguns precisavam serem punidos com a pena capital: a morte! Para executar tal trabalho havia um homem em especial. Seu pai realizava tal ingrata tarefa e o legado foi passado a ele, pois era assim que se fazia. Porém, entre os cidadãos, não era permitida a convivência com alguém de labor tão nefasto. Temiam que Deus fizesse recair alguma praga sobre a cidade por causa dele, ou que sua presença atraísse a peste ou o próprio diabo.

Longe dali, o vento soprava na floresta. Não era tão forte, mas o suficiente para fazer ranger as velhas telhas de sua casa mal cuidada, de aspecto tenebroso. Ele não se incomodou. Já estava acostumado com os sons fantasmagóricos que sempre o acompanhavam, seja por causa do local onde residia, seja pela má conservação de sua residência...

... ou pelas conseqüências de sua profissão.

Quem é ele?

Rússia, o carrasco! Provavelmente o homem mais temido e desprezado da cidade. Tanto que sua casa fica na floresta, bem distante de todos. Só aparece na cidade para comprar mantimentos ou para exercer o seu dever. Mas por onde passa sempre recebe olhares de medo, repulsa, ódio, desprezo. Os homens estreitam os olhos, as mulheres se benzem, as crianças se escondem atrás das saias de suas mães. Ninguém quer ter qualquer tipo de contato com um homem cujo ganha-pão é a morte. Lendas eram espalhadas de que os espíritos dos condenados o acompanhavam buscando vingança e que a má sorte estaria reservada para aqueles que ousassem ter qualquer relação com ele.

Ele descansa sentado em uma rústica cadeira de carvalho. Faz algum tempo que não é chamado para trabalhar. No entanto não há preocupação em passar necessidade já que a floresta sombria também pode ser generosa, fornecendo-lhe caça e pesca sempre que precisa e algumas frutas dependendo da estação. Pega um pedaço de pão, já endurecido pelo tempo, e corta dois pedaços, recheando com uma fatia generosa de carne de cervo assada, resultado da última caça. Enche uma taça de vinho e se prepara pra comer quando ouve batidas na porta.

Um tanto contrariado por ter sido interrompido em sua refeição, ele se levanta e caminha a passos pesados até a porta. Abre-a só até a metade, fazendo com que ela produza um rangido estranho e logo vê a figura de um soldado do rei. Pela aparência fidalga, parece ser um dos homens de confiança de Sua Majestade. O homem não se demora em fazer aquilo a que veio. Entrega nas mãos de Rússia um pergaminho e diz num tom seco.

_ Há trabalho para você. Dirija-se a cidade ainda hoje.

Rússia não responde. Apenas acena com a cabeça como quem diz "sim". O soldado, cumprido sua missão, vira-se, sobe em seu cavalo e vai embora. O carrasco ainda espera um pouco até vê-lo sumir entre as árvores e, só então, entra e fecha a porta.

O eslavo suspira olhando para o teto. Mais um trabalho, mais uma morte, mais um espírito vingativo para assombrá-lo. Essa era sua sina. Ser o arauto da morte e enviar almas para o céu ou para o inferno. Estar sempre com as mãos e a alma sujas de sangue. De repente ele balançou a cabeça vigorosamente para afastar esses pensamentos. Depois de tantos pecados era um pouco tarde para ter peso na consciência.

_ Trabalho é trabalho! E alguém precisa fazê-lo. E se tem que ser eu, que seja! Já sei que vou para o inferno mesmo então, um condenado a mais ou a menos não fará diferença. _ Ele diz para si mesmo respirando fundo e expirando com força, franzindo o cenho. Depois volta a se sentar em sua mesa e termina a refeição que havia preparado. É provável que não lhe oferecessem nada melhor pra comer quando chegasse à cidade. Terminado, ele veste uma capa de pele de animal que sempre usava pra se proteger do frio, pega seu instrumento de trabalho (um machado), tranca sua casa e vai caminhando em direção ao seu destino.

Último desejoOnde histórias criam vida. Descubra agora