CAPÍTULO 14

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*** capítulo sem correção ortográfica ***

Stella

Tudo no mundo começou com um sim.
Clarice Lispector disse uma vez, e hoje enquanto tento manter minhas funções vitais funcionando, me pego pensando nos sims que me trouxeram até aqui.
O primeiro de todos, foi o sim que dei a Suzy quando aceitei ir aquele show, depois o sim que dei ao garoto atrevido que me impediu de cair, quando me convidou para ir com ele para aquele beco.
Mas antes daqueles sims, vieram outros, muitos anos atrás, quando disse sim a professora de literatura que me presenteou com um exemplar surrado de Jardim Secreto e disse que aquele livro mudaria a minha vida. E ele mudou.
O sim que dei ao responder ao responsável por minha entrevista de emprego quando me perguntou se eu estava disposta a iniciar imediatamente.
Ou o sim que dei ao motorista de taxi quando ele perguntou se eu me importava que ele dirigisse mais rápido para não perder o vestibular que me permitiu estudar e me formar e me tornar professora, a professora que, milhares de sims depois, está aqui agora.
Tudo começou com um sim, depois outro e outro e outro...
Eu não sei ao certo o que estou sentindo, nem posso comparar com nada que tenha vivido até hoje, o mais próximo foi o dia em que minha mãe morreu, não o sentimento de perda, a dor ou o medo, mas a sensação de sentir meu corpo adormecido, tudo em silencio, só o som do meu coração batendo com força em meu peito.
É exatamente assim que me senti durante os 40 minutos em que fiquei trancada naquela sala, sentindo o olhar dele sobre mim, como se fosse capaz de me despir, me enxergar, me julgar.
Seu olhar, a parte mais bela do seu rosto de menino, aquela que me atraiu para ele, a mais sincera e expressiva de todas.
Deus do céu!
Isso só pode ser uma brincadeira de mal gosto, não pode ser real, por favor, que não seja real.
Olho para a lista de chamadas, o nome dele está lá, exatamente como ele me disse, Nuno Castro d’Agostinni, terceiro ano, turma de literatura.
Meu aluno.
Sinto um nó em meu estomago enquanto meu cérebro raciocina, coisas simples, matemática básica, o suficiente para que eu me dê conta de que ele é apenas uma adolescente, e eu sou...
Não consigo respirar direito, passo pelos alunos que se aglomeram nos corredores sem fim dessa escola imensa, tento me recordar qual deles me levará até a sala dos professores, mas desisto e entro no primeiro banheiro que encontro, as garotas param o que estão fazendo e olham para mim, entro em um reservado e tranco a porta, me sento no chão colocando minha cabeça entre as pernas e tentando respirar, minutos se passam sem que eu me mova, desejo poder desaparecer, sumir desse lugar, dessa realidade monstruosa onde em algum lugar lá fora, o garoto com quem tive uma das mais devassas experiencias da minha vida, é meu aluno.
Finalmente me levanto e saio, o banheiro está quase vazio, vou até a pia e pego um punhado de papel, molho e passo na minha nuca, bochecha e testa, uma garotinha pergunta se estou bem, mas não consigo falar, então apenas sorrio para ela enquanto sigo molhando meu rosto, não ligo se estou estragando minha maquiagem ou se vou parecer uma maluca na próxima aula. Tenho certeza que foi exatamente assim que os alunos me imaginaram enquanto eu usava todas as minhas forças para não desmaiar na frente deles.
O tempo passa, mas não consigo me mover, olho para a mulher no espelho enquanto imagens daquela noite rondam minha mente.
“Rebola para mim”
“ isso, aperta com mais força”
“ eu vou gozar...”
Fecho os olhos e tento empurra-las para algum lugar bem no fundo, desejando poder esquece-las, me obrigo a pensar na sala de aula cheia, 22 pares de olhos atentos a mim, um em especial, de um verde tão intenso que senti como se ele pudesse me consumir, como se naquele momento ele também estivesse de volta naquela noite, relembrando tudo o que fizemos.
Respiro fundo algumas vezes, devagar, tentando me acalmar, não conseguirei fazer nada se não me acalmar, preciso pensar direito, me colocar na posição de adulta, séria e responsável que sou, ele é só um menino e talvez, se conversarmos direitinho, ele pode guardar esse segredo com ele, ou talvez se eu me recusar a falar sobre isso, se fingir que nada aconteceu, ele pode entender que aquela noite foi um deslize.
Merda!
Uma única noite, uma única mancha em minha vida perfeita e agora sinto que tudo o que fiz não serviu de nada, no fim das contas meus atos me assombrarão para o resto da minha vida.
A porta se abre e me assusto quando uma garota entra e me encara.
— Tá tudo bem ai?
— Está sim, eu só estou retocando a maquiagem. — minto e ela parece acreditar.
Volto a olhar para o espelho sentindo que meu coração não vai desacelerar, preciso sair e enfrentar o resultado das minhas escolhas. Eu sou a professora, preciso fazer ele compreender isso, mas antes, preciso me fazer entender isso.
Jogo os papeis no lixo e fecho minha bolsa, me olho mais uma vez no espelho e tento arrumar os cabelos, vou até a porta e abro, encontro um segurança, a coordenadora e mais um grupo de meninas parados na minha frente.
— Desculpe senhorita. — o homem diz se afastando, nitidamente sem graça.
— Você está bem Stella? — a coordenadora fala parecendo preocupada.
— Sim estou. — digo, a voz fraca demais para passar credibilidade.
— As meninas te viram no banheiro, disseram que você estava pálida, depois quando viram que você demorou para sair, acharam melhor me chamar.
Olho para as garotas tentando reconhece-las da sala de Nuno, mas seus rostos se parecem com todos os outros, jovens, lindos, leves, sem preocupações.
— Eu tive uma tontura, achei que iria desmaiar, a ansiedade pelo primeiro dia me fez pular o café da manhã, mas já estou me sentindo melhor.
— Oh pobrezinha, venha, vamos passar na enfermaria e depois vamos tomar um café. — ela passa o braço por minha cintura me puxando. — Meninas voltem para suas aulas, a professora Stella já está bem.
As meninas hesitam um pouco antes de caminhar para a sala no fim do corredor e tenho a certeza que até o fim do dia não haverá nenhuma pessoa nessa escola que não esteja sabendo que a professora passou mal no seu primeiro dia de aula.
Como se minha situação já não estivesse ruim o suficiente.
A coordenadora faz exatamente o que disse, me leva até a enfermaria, uma sala grande equipada com tudo o que tem de mais moderno, onde uma enfermeira está sentada lendo um romance sobrenatural.
Ela me examina e constata que minha pressão caiu, meus batimentos estão acelerados e que talvez esteja sobre forte stress, muito sagaz da parte dela descobrir o obvio, em seguida vamos até a sala dos professores que está quase vazia e nos sentamos para tomar café.
— Quando será a sua próxima aula? — a coordenadora pergunta enquanto adoça seu café.
— Daqui a vinte minutos.
— Então trate de comer. — ela empurra um bolinho na minha frente e me forço a comer para que ela fique satisfeita.
— Posso fazer uma pergunta? — digo encarando a xicara.
— Claro, fique a vontade.
— Quando fui contratada, havia um professor de literatura aqui, ele já se desligou da escola?
— O professor Jairo? Sim, ele foi embora no fim do ano passado, não foi fácil encontrar alguém que atendesse as exigências do diretor, ele leva a sério a qualidade dos profissionais que trabalham conosco, por isso quando soubemos que você havia preenchido todas as especificações foi um alivio, nossos alunos precisam de alguém preparada, principalmente os anos finais, que terão aulas mais intensivas com a senhorita.
Quase engasgo com o café enquanto ela fala, tento me imaginar dando aulas para Nuno, elaborando trabalhos, me aproximando para esclarecer alguma questão, citando trechos de romances que amo, sabendo que ele estará lá, ouvindo tudo.
Jesus amado...
O alerta para a próxima aula soa e os poucos professores que estão na sala se levantam, faço o mesmo agradecendo a ela por ter cuidado de mim. Passo o resto do dia agindo como uma fugitiva, caminho apressada pelos corredores, os olhos fixos no chão, o coração agitado com a perspectiva de vê-lo a qualquer momento, com o passar das horas consigo relaxar, mas não o suficiente para esquecer que em algum lugar desse edifício está ele, cercado de outros jovens, sorrindo, conversando, estudando.
E quando o ultimo sinal toca, me levanto e caminho até a sala dos professores, agora lotada com todos eles, cansados por um dia longo de trabalho, ansiosos para irem para suas casas.
Vergonhosamente enrolo para ir embora, converso com todos que me perguntam como foi o meu primeiro dia, agradeço os que se oferecem para me ajudar em algo caso precise, finjo não sentir as mãos suadas e o coração acelerado enquanto ouço o edifícil se silenciar pouco a pouco.
Tenho medo de sair e dar de cara com Nuno a minha espera, tenho medo de que todos notem como seu olhar me afeta, então finjo estar anotando algo em meu plano de aula até que tudo a minha volta se torne silencioso.
Quando saio da escola a tarde já está quase no fim, o sol está se pondo, deixando o céu em um tom alaranjado de tirar o folego, há alguns poucos grupos de alunos espalhados aqui e ali, não faço contato visual com nenhum deles e rezo para que Nuno não esteja em nenhum deles, sei que é um pensamento covarde, nada vai mudar o fato de que duas vezes por semana terei que ficar em uma sala de aula com ele.
Ajusto a alça da bolsa em meu ombro e lamento o fato de não estar de carro, seria uma boa forma de me esconder, ao menos por hoje, ao menos para que eu possa me preparar melhor e decidir como falar com ele.
Só consigo respirar novamente quando abro a porta do meu apartamento, já não o sinto mais tão pequeno, na verdade as paredes que antes eram quase claustrofóbicas me parecem deliciosamente convidativas,  me sinto protegida, acolhida, escondida. Mesmo que seja por algumas horas.
Amanhã é outro dia, hoje eu só preciso pensar.

NUNOOnde histórias criam vida. Descubra agora