Corpo fechado

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"A barata diz que tem
sete saias de filó...
É mentira da barata:
ela tem é uma só."
(Cantiga de roda.)

José Boi caiu de um barranco de vinte metros; ficou com a cabeleira enterrada no chão e quebrou o pescoço. Mas, meio minuto antes, estava completamente bêbado e também no apogeu da carreira: era o "espanta-praças", porque tinha escaramuçado, uma vez, um cabo e dois soldados, que não puderam reagir, por serem apenas três. — Você o conheceu, Manuel Fulô?

— Mas muito!... Bom homem... Muito amigo meu. Só que ele andava sempre coçando a cabeça, e eu tenho um medo danado de piolho...

— Podia ser sinal de indecisão...

— Eu acompanhei até o enterro. Nunca vi defunto tão esticado de comprido... Caixão especial no tamanho: acho que levou mais de peça e meia de galão...

— E quem tomou o lugar dele?

— Lugar? O sujeito não tinha cobre nem p'ra um bom animal de sela... O que ganhava ia na pinga... Mão aberta...

— Mas, quem ficou sendo o valentão, depois que ele morreu?

— Ah, isso teve muitos: o Desidério...

— Cuera?

— Cabaça... Só que era bruto como ele só, e os outros tinham medo dele. Cavalo coiceiro... Comigo nunca se engraçou!

— Como acabou?

— Acabou em casa de grades. Foi romper aleluia na cidade, e os soldados abotoaram o filho da mãe dele... Não voltou aqui, nunca mais...

— E o tal Dêjo?

— Esse foi depois... Antes teve o Miligido... E o nome daquele era Adejalma, nome bobo, que nem é de santo... Um peste. Muita prosa, muita farroma, mas eu virei o cujo do avesso! Me respeitou! Me respeitou, seu doutor!

— Briga, Manuel?

— Lhe conto, seu doutor. Foi na venda: eu estava comprando cadarço de roupa, coisa de paz... O homem já veio chegando enjoado, me olhando com cara de herege... Negaceou. Depois, virou p'ra o Pércio, que era caixeiro nesse tempo, e perguntou: "O senhor tem aí dessa raça de faca que entra na barriga e murgueia?" E olhou p'ra mim, outra vez, p'ra ver se eu estava com receio...

— E você, Manuel Fulô?

— Eu ia serrar de cima, mas nem não tive tempo, porque nessa horinha vinha entrando um tropeiro da Soledade, que era homem duro, e pensou que a ofensa era p'ra ele... E aquilo foi o tropeiro dando um murro no balcão, e tossindo, e perguntando também p'ra o Pércio: "Por falar nisso, o senhor não terá também dessa raça de bala que bate na testa e chateia?!" Pois aí o Adejalma se riu de medo, e disse que estava era brincando...

— Mas, então, Manuel, como foi que você virou o Dêjo pelo avesso?

— Ara, ara, seu doutor! Se o tropeiro não tivesse entrado, eu fazia desordem, e fazia mesmo... Porque, depois, o cachorro do Adejalma ainda me perguntou, só por deboche, porque ele estava cansado de saber quem eu era: "Como é que você chama, rapaz?"...

— E você?

— Eu pus a mão na coronha da garrucha, e respondi: "Só eu perguntando p'r'a minha mãe"...

— E ele?

— Um desgraçado! Era só ele bulir, e eu mais o tropeiro mandávamos o corpo dele p'ra o quincumbim... Aquele sujo! Assassino! Tralha!

— Que raiva é essa, fora de hora, Manuel?

— Pois o senhor não imagina que, ao depois, o miserável desse Adejalma, só por medo da minha macheza, me convidou, mais o tropeiro, p'ra beber com ele e fazer companhia?... O tropeiro agradeceu e não aceitou, mas eu fui, porque não sou soberbo... Pois o senhor não acredita que o canalha foi encomendando despesas, e me elogiando e respeitando, até que eu fiquei assim meio escurecido, e aí ele foi-s'embora e me deixou sozinho p'ra eu ter de pagar tudo, por perto de uns quatro mil-réis?... É ou não é p'ra uma pessoa correta ter raiva? É ou não é?!... Cachorro! Morreu de erisipela na cara...

Sagarana (1946)Onde histórias criam vida. Descubra agora