Conversa de bois

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"— Lá vai! Lá vai! Lá vai!...
— Queremos ver... Queremos ver...
— Lá vai o boi Cala-a-Boca
fazendo a terra tremer!..."
(Coro do boi-bumbá.)

Que já houve um tempo em que eles conversavam, entre si e com os homens, é certo e indiscutível, pois que bem comprovado nos livros das fadas carochas. Mas, hoje-em-dia, agora, agorinha mesmo, aqui, aí, ali, e em toda parte, poderão os bichos falar e serem entendidos, por você, por mim, por todo o mundo, por qualquer um filho de Deus?!

— Falam, sim senhor, falam!... — afirma o Manuel Timborna, das Porteirinhas, — filho do Timborna velho, pegador de passarinhos, e pai dessa infinidade de Timborninhas barrigudos, que arrastam calças compridas e simulam todos o mesmo tamanho, a mesma idade e o mesmo bom-parecer; — Manuel Timborna, que, em vez de caçar serviço para fazer, vive falando invenções só lá dele mesmo, coisas que as outras pessoas não sabem e nem querem escutar.

— Pode que seja, Timborna. Isso não é de hoje: ... "Visa sub obscurum noctis pecudesque locutae. Infandum!..." Mas, e os bois? Os bois também?...

— Ora, ora!... Esses é que são os mais!... Boi fala o tempo todo. Eu até posso contar um caso acontecido que se deu.

— Só se eu tiver licença de recontar diferente, enfeitado e acrescentado ponto e pouco...

— Feito! Eu acho que assim até fica mais merecido, que não seja.

E começou o caso, na encruzilhada da Ibiúva, logo após a cava do Mata-Quatro, onde, com a palhada de milho e o algodoal de pompons frouxos, se truncam as derradeiras roças da Fazenda dos Caetanos e o mato de terra ruim começa dos dois lados; ali, uma irara rolava e rodopiava, acabando de tomar banho de sol e poeira — o primeiro dos quatro ou cinco que ela saracoteia cada manhã.

Seriam bem dez horas, e, de repente, começou a chegar — nhein... nheinhein... renheinhein... — do caminho da esquerda, a cantiga de um carro-de-bois.

O cachorrinho-do-mato, que agora lambia, uma a uma, as patinhas, entreparou. Solevou o focinho bigodudo e comprido, com os caninos de cima desbordando, e, de beiços cerrados, roncou o seu crepitar constante, ralado contra o céu-da-boca.

Mas o outro som foi aumentando, e o carro já estava muito perto.

Com um rabeio final, o papa-mel empoou-se e espoou-se nas costas, e andou à roda, muito ligeiro, porque é bem assim que fazem as iraras, para aclarar as ideias, quando apressa tomar qualquer resolução. Girou, corrupiou, pensou, acabou de pensar, e aí correu para a margem direita, sempre arrastando no solo os quartos traseiros, que pesam demais. E, urge, urge, antes de pegar toca, parou, e trouxe até à nuca, bem atrás de uma orelha, uma das patas de trás, para se coçar.

O rechinar, arranhento e fanhoso, enchia agora a estrada, estridente.

O bichinho mediu, com viva olhada, um arco de círculo, escolhendo o melhor esconderijo: ao pé do pé de farinha-seca, num emaranhado de curuás, balieiras e sangues-de-cristo. Com dois saltos e meio, e mais meia-volta, aninhou o corpo cor de hulha, demasiado indiscreto para a paisagem. Deixava apontar a cabeça e o pescoço, meio ruivos, mas as flores do curuá, em hissopes alaranjados, estavam camaradissimamente murchas, as folhas baixas da balieira eram rubras, e o resto a poeira fazia bistre, ocre, havana, siena, sujo e sépia. Somente os olhos poderosos de um gavião-pombo poderiam localizar a irarinha, e, mesmo assim, caso o gavião tivesse mergulhado o voo, em trajetória rasante.

Sim e mais, mascarava-se o perfume, sobrado de forte e coisa nenhuma agradável, inseparável do cãozinho silvestre: porque as frutas da trepadeira cheiravam maduramente a maçãs.

Sagarana (1946)Onde histórias criam vida. Descubra agora