Lucas

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    Certo, podem arrancar a minha cabeça do meu corpo. Sei que não consigo aguentar por muito tempo. A dor de cabeça está me matando.
    E essa música? Tem alguém cantando ou além de bêbado estou ficando louco?
    Tento abrir os olhos, mas a luz que entra pelas cortinas finas e brancas quase me deixa cego.        Mas que inferno! Ninguém conhece cortinas blackout nesse fim de mundo?

    Levanto da cama me equilibrando em nada menos do que o ar que me cerca e, caio que nem um idiota entre a cama e a mesa de cabeceira. Apoio os braços no colchão e impulsiono meu corpo para cima. Quando finalmente fico de pé, aguardo uns segundos para que tudo pare de girar. Arrisco uns passos em direção à porta como uma criança que está aprendendo a andar.
    Preciso saber quem é a louca que está cantando a essa hora da madrugada. Verifico as horas no telefone, ainda nem passou das dez da manhã. Com certeza ainda é madrugada em algum lugar do mundo.

    Minha mala está jogada no canto do quarto junto às garrafas de cerveja que bebi ontem à noite. Pego uma bermuda na bagunça de roupas e visto por cima da cueca sem me preocupar em colocar uma blusa.
    O som da voz feminina me chama atenção novamente e percebo que está vindo do banheiro que fica no corredor próximo ao quarto de hospede. Estou curioso para saber de quem é, porque mesmo com a cabeça estourando de dor, a voz é suave e bonita pra cacete.
    Essa pessoa sabe cantar!

    Estou na metade do caminho quando o cheiro de café me faz parar bruscamente e virar na direção oposta, nada melhor do que esse líquido mágico para acordar. Com passos incertos e silenciosos pelo corredor chego até cozinha e travo na porta.
    Será que acordei na casa errada? 
    Pisco duas vezes e balanço a cabeça como louco tentando entender a cena na minha frente. A menina está sentada em uma das cadeiras altas na bancada, segurando uma xícara com uma das mãos e um livro na outra. Ela não me vê, pois o livro está ocultando sua visão, então reparo em suas mãos pequenas, nos cabelos caindo em volta do rosto encoberto e na xicara onde se lê a seguinte frase: "Existe uma grande chance de ser cerveja".
    No momento em que me dou conta do que ela está lendo, fico tão confuso que esqueço completamente do que vim fazer na cozinha.

  - Sério que você está lendo isso? – Minha voz soa estranha, como se tivesse com a garganta inflamada.

    Ela abaixa o livro em câmera lenta, marca a página para não se perder e pisca algumas vezes antes de dizer;

- Não se preocupe eu já li piores. - Ela dá de ombros.

- Não existe livro pior do que "As virgens suicidas". É um clássico chato e acredito que você não tem idade para ler isso.

     Ela me encara como se eu fosse um louco. Examina meu rosto com atenção e depois espia o corredor para ver se alguém está vindo. Por um momento penso que ela vai gritar, está com medo de mim, afinal sou um estranho por aqui, mas ela só aponta para a máquina de café e diz.

- Parece que você precisa disso.

    Coloco um pouco na xícara e dou um gole longo. O café desce queimando minha garganta e xingo todos os palavrões que eu conheço mentalmente antes de notar que a menina continua me observando, tentando entender o que está acontecendo.

- Isso aí na sua xícara é mesmo café? Você sabe que crianças não deveriam beber café, não é? – Pergunto.

- Não existe uma comprovação cientifica para isso. O café contém antioxidantes, vitaminas e minerais que estimulam e, me deixam mais desperta durante o dia. - Ela estala a língua - Sem contar que minha mãe é tão viciada que sempre diz que quando me amamentava saia café e não leite materno.

    Ela sorri, o que me faz sorri também. 

- Nossa, sua mãe deve ser uma figura. Primeiro te alimenta com café. - Eu aponto para o livro na bancada. - Depois te obrigada a ler isso.

- Ela diz que estou quase na adolescência e que se um dia eu for uma dessas meninas mimadas, chatas e que só pensam em namorados e baladas, ela será como a Sra. Lisbon. Totalmente repressora. - Ela revira os olhos - Mas no fundo ela é gente boa e só quer que eu tenha medo.

- Até eu estou com medo dela agora. Esse livro é um incentivo e tanto para isso. – Coloco mais café na minha xicara. - Por acaso sua mãe é essa que está cantando?

- Sim. - Ela sorri novamente. - Hoje o repertorio é músicas pop. Até que não é dos piores. Fico louca quando é dia de rock dos anos 80. A proposito meu nome Nina.

       Ela estica o braço para um aperto de mão e eu retribuo sacudindo o braço fino de Nina e apertando a mãozinha quente que estava segurando a xícara. 

- Eu sou o Lucas. Sua mãe sabe que eu já cheguei?

- Não, ela acha que você só chega à noite por isso me trouxe. Normalmente eu não venho com ela aos sábados, fico em casa com o Jonas, mas a noite foi boa e ele finalmente encontrou o amor da vida dele. - Ela bufa. - Já é o terceiro "amor da vida" que ele encontra esse mês, mas estamos com esperança.  - Diz ela, fazendo o sinal de aspas com as mãos. 

- Ele deve ser uma pessoa romântica. – Não consigo me lembrar a última vez que conversei assim com uma criança.

      Nina bate o dedo indicador no queixo como se estivesse pensando e diz;

- Na verdade eu acho que é só sexo.

   Eu me engasgo e cuspo o café em cima da bancada. Nina me olha e sorri, depois estica um guardanapo na minha direção, soltando uma gargalhada. Definitivamente eu nunca conversei com uma criança assim.

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