Capítulo 3: Desenvolvimento

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  Até os meus vinte e poucos anos eu ia todos os dias à igreja. Todos-os-dias.  Não importava se eu estivesse doente, se estivesse chovendo, caindo um temporal, se o mundo estivesse acabando, se eu estivesse desmaiando de tão debilitada que me encontrava, eu ia para a igreja todos os domingos, isso era um costume sagrado. Então a minha infância é marcada por muitos momentos na igreja, não só aos domingos mas aos dias da semana também, pra ser sincera quase todos os dias.
Para complementar a educação cristã que recebia, fui matriculada em uma escola evangélica. Todas as atividades extra curriculares que eu fazia eram ministradas por evangélicos escolhidos pelos meus pais. A religião era o requisito principal para a escolha daquilo que adentraria minha educação. Até hoje eles são assim, usam a religião como indicador de caráter.
  Como consequência dessa visão religiosa, cresci dentro de uma bolha. Anos depois, na vida adulta, tive problemas com socialização, mas isso contarei em outro capítulo. 
  Fui ensinada ao longo da vida que amizades não-cristãs não são viáveis, já que é impossível haver "comunhão entre luz e trevas" e no caso, eu como cristã seria a luz. Aliás, qualquer ameaça a minha vida religiosamente regrada deveria ser cortada pela raiz. E isso era incutido em minha mente sempre, já que minha vida girava em torno de religião. Há sempre quem diga que em sua igreja é diferente, ou algo semelhante a isso, mas em todas que visitei os aconselhamentos dos líderes eram os mesmos: se afastar de amizades que te afastam de deus.  O problema desse pensamento, é que ele é muito relativo e propenso a diversas interpretações. Muitas vezes a pessoa que toma pra si esse conselho, entende que se deve afastar de quem não professa a mesma fé, e só se aproximar pra pregar o evangelho (impor sua religião e encher o saco de quem não quer ser cristão). Pois bem.
Quando eu era nova, a minha vizinha, uma artista muito discreta, decidiu dar aulas de pintura para algumas crianças da minha rua. Eu não sei como ela conseguiu convencer meus pais a permitirem minha participação das aulas, mas lá fui eu aprender a pintar. Eu era uma criança, nem lembro a idade que eu tinha, mas lembro que eu amava as pinceladas que dava naquele ateliê colorido. Foram semanas de leveza em meio as tintas e quadros. Até o dia em que casualmente, em busca do banheiro, descobri sem querer a sala de rezas (é assim que se diz?) da minha vizinha. Ela era do candomblé, e tinha várias imagens  e estátuas de suas entidades na sala de sua casa. Quando eu vi aquilo pela primeira vez, vislumbrei a imagem do diabo. Vou explicar, calma.
Eu era uma criança evangélica cuja a única realidade que conhecia era a cristã. Meus pais tinham me ensinado que qualquer religião que não fosse a cristã (aquela que eu seguia) era do diabo, logo seus fiéis pertenciam ao diabo. E também tinham me ensinado que qualquer humano que não fosse cristão seria uma ameaça à minha relação com Deus e que logo eu deveria me afastar e só me aproximar se fosse pra pregar o evangelho. Essa era a única realidade que eu conhecia.  E eu acreditava que ela era uma verdade absoluta incontestável. Então quando vi a sala da vizinha, tive a pior reação que um ser humano poderia ter: saí correndo e não quis entrar lá nunca mais.
No dia seguinte minha vizinha me chamou no portão e me deu um "sabão" sobre intolerância religiosa (e com razão). Na época, por ser muito nova, não tinha entendido nada do que ela tinha dito. Sequer sabia o significado da palavra "intolerância". Eu só entendia aquilo que meus pais tinham dito, então acreditava que tinha agido de forma correta. Minha mãe, a época, quando soube do ocorrido concordou com minha reação, pois ela sempre teve horror a religiões de matriz africana.
  Eu só fui entender o sabão sobre "intolerância religiosa" anos mais tarde, quase 15 anos mais tarde, ao estudar afundo sobre preconceitos na faculdade e entender que a atitude que tive na infância foi errada. Se eu pudesse pedir milhões de desculpas para aquela vizinha eu pediria. Mas infelizmente não tenho mais contato com ela a anos. Mas hoje reconheço que a atitude que tive foi errada, apesar de sido ensinada a ter aquela atitude.
  Tive que desaprender para aprender a ser humana.

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