Mirela estava impaciente, tinha que se arrumar para o furdunço, mas tinha um grande empecilho. Seu irmão roncava sonoramente no quarto dele e ela precisava dele acordado para cuidar do caçula da casa. Sua tarefa era árdua, seu irmão tinha chegado em casa sete horas daquele domingo, emendou o fuzuê com um barzinho e com outra festa de rua que ele encontrou perambulando pela madrugada soteropolitana. Nem tinha tirado a fantasia, o pirata manco e caolho batizado Pinlho, por seu criador.
Aquela fantasia era o maior marco do irmão, usava para todo evento que podia, mas no carnaval, ele realmente entrava no personagem. Colocava um gesso no pé e o pintava de marrom, simulando uma perna de pau; Pegava um pedaço de um sutiã velho da mãe, cortava um pedaço de papel, pintava de preto e colava junto ao pedaço do sutiã, fazendo o tapa olho; o resto do sutiã servia de bandana e, por último, mas não menos importante, o chapéu... pegava um jornal antigo, fazia um barco com ele, jogava num balde de tinta preta e, com um corretivo, desenhava uma caveira e como se não bastasse, dependendo dos "ventos", ele usava uma cabo de vassoura como bengala.
O pirata estava para lá de naufragado e ela tinha que resgatar aquele marujo se quisesse sair naquele dia ainda. Ao chegar no quarto dele sentiu o odor do álcool atravessar suas narinas, mas ela estava focada em sua missão, o ilê ia tocar e ela nunca perdia uma apresentação deles.Abriu a porta, os pedaços do pirata estavam espalhados pelo quarto, sobrando só seu irmão, deitado na cama babava vigorosamente num pedaço de jornal que antes era um chapéu.
— Acorda, maninho. — Cochichou no ouvido dele, tentou a abordagem amorosa, costumeira dela.
A única reação dele foi levantar o seu braço esquerdo e abanar o "mosquito" perto do ouvido, ela quase leva um tapa, mas os reflexos dela estavam apurados para perceber o movimento do irmão e se esquivou graciosamente. Tinha que ser mais rigorosa... Deu tapas nele, jogou água na cara dele e nada. Resolveu apelar, começou a falar com pesar na voz enquanto saia do quarto devagar.
— Poxa... A moqueca tá acabando e mãinha pediu pra ver se tu tava acordado pra comer, mas com você dormindo assim... vamos ter que dar pra Lul...Ela nem teve tempo de terminar a frase e o irmão já tinha passado dela correndo em direção a cozinha. Começou a desacelerar o passo chegando perto do fim do corredor, alguma coisa não cheirava bem, respirou fundo e fez uma careta quando notou que era ele, mas também notou a falta do cheiro, característico, da moqueca de sua mãe. Pensou "Mãinha não é louca de dar dendê para o cachorro" e pensou mais "em anos de Lulu nessa casa, sempre foi estabelecido: as sobras sempre são minhas." E, mesmo pesando tanto, não conseguiu desvendar o mistério. A risada da irmã se fazia cada vez mais sonora, atrapalhando seu raciocínio, então percebeu o engano.
— MIRELA!!! — Gritou numa mistura de raiva e tristeza. — Você sabe que a moqueca de mãinha é sagrada, não se deve brincar disso...
— Hehehe... desculpa irmão, não resisti, mas você não acordava também, tive que apelar. — Deu de ombros ainda rindo muito.
— HÁ-HÁ-HÁ não sabia que tinha vindo do circo pra ser palhaça assim. Agora, se me der licença, vou voltar a dormir. — Começou a caminhar até o quarto sem nenhum traço do velocista de mais cedo.
— Não, calma lá. Preciso de você acordado! — Falou confiante.
— Pra que? — Falou sem mudar o passo ou fazer menção de quem iria acatar qualquer pedido. — Vou pro furdunço e preciso que tome conta de Carlinhos. — Deu um largo sorriso para ele.
— Uhum... — Ele respondeu entrando no quarto e fechando a porta devagar.
— Pô Nil, pode ser meu último carnaval e você sabe disso. — Ela resolveu apelar e funcionou.
— "Pô Nil" Uma porra, você ganhou uma bolsa pro exterior, não significa que você nunca mais vai voltar. — ele tinha virado para trás encarado ela.Ele já tinha tido muitos debates com a irmã, mas nunca ganhou desde que ela começou a usar esse argumento, mas queria muito dormir para desistir fácil assim.
— Tem bola de cristal para saber o futuro agora? Quem garante que eu queira voltar? —Ela não ia perder aquela briga.— Não tenho bola de cristal, mas tenho mãinha. Ela vai garantir que você volte, nem que ela, pessoalmente, puxe seus cabelos da África até aqui e, além do mais, você nunca ia perder o ilê. — Falou triunfante.
— Como você mesmo disse nunca perderia o ilê. — Ele abriu um sorriso ao escutar ela fala. — E é, exatamente, por isso que tenho que ir para a última apresentação do ilê antes de voltar para nossa verdadeira "casa". — Agora ela que sorria depois daquele argumento.
Ele pensou em algo para o trazer de volta, mas ela leu o seu semblante e continuou.
— Quebra essa para mim, você sabe que é o meu irmão mais velho favorito. — Disse ela com todo dengo que o mundo trazia consigo.
— Eu sou seu único irmão mais velho... — Encarou aquelas duas pedras preciosas que carregava nos olhos, nunca conseguiu dizer não quando encarava para ela.
—... Tá bom, só para você não dizer que nunca fiz nada por você. — Respondeu se rendendo.
Ela se aproximou para dar um abraço no irmão, mas assim que ele levantou os braços, recuou. Se entreolharam e, em consenso, evitaram o contato seguindo cada um para seu lado. Mirela, tinha passado pela pior parte da missão, mas ela estava apenas começando. A roupa estava separada, comida pronta e agora só faltava ela começar a ser arrumar. Tomou um banho demorado, tinha tempo de sobra, ficou feliz em ter conseguido acordar o irmão na primeira tentativa, normalmente ele só levanta na quinta... Estava pensativa, podia não ser o último carnaval, porém não sabia o quanto essa viagem ia mudar ela, só sabia que iria mudar bastante. Saiu do banho, preparou o almoço dela e dos irmãos: peixe frito, arroz e caruru. A mãe tinha deixado o peixe temperado e o caruru pronto, ela só fez fritar e servir. Os irmãos estavam tão absortos na televisão que nem prestaram atenção no cheiro ou escutaram o peixe sendo frito, mas o aroma era forte e nadou entre suas narinas se fazendo notar. O apetite, antes nulo, agora estava mais vivo e voraz do que nunca. Ela já tinha posto à mesa, comida de dendê e refrigerante, a lei do domingo. A mesa estava quase completa, só faltava os pais, tinhamsaído para um almoço que uns amigos antigos estavam organizando. Aquele almoço com os irmãos, sem os pais, era um sinal da mudança em sua vida. Um ciclo ia se fechando, estava chegando a hora da mudança e ela se sentiu incerta se esse era o caminho certo. Lágrimas fugitivas correram seu rosto, o pequeno Carlos percebeu e anunciou o evento do jeito dele "Tá cholando, Milinha?" O jeitinho meigo de Carlinhos,destrancou a porta dos olhos dela, mas Nil fez o "favor" de trancar a porta e botar cadeado com uma frase de grande sensibilidade.
— O caruru de mãinha é bom mesmo, mas não precisa chorar, o peixe que você fritou tá tão sem sal que quase apaga o sabor dele. — Falou dando uma garfada totalmente despreocupado com o clima ao seu redor.
— Nossa, Nilson... Você é tão sensível, até perdi o apetite. — Ela o encarava brava.
— ...Então, você não vai comer mais isso, né? — Não esperou confirmação e já pegava a posta de peixe do prato dela. — Mais para mim, sem sal é mais saudável, obrigado "Milinha". — Abocanhou o peixe e deu um sorriso, no mínimo, nojento para ela.
— Porco! — Se levantou da mesa, não tinha mais comida em seu prato de qualquer forma. — Vou terminar de arrumar e sair, tchau.
Antes de ir embora, limpou a bocacom um dos guardanapos da mesa, beijou a testa de Carlinhos e saiu para o quartodando língua para Nil.Vestiu a roupa que tinha separado com agilidade. Uma saia rodada amarela com listras pretas horizontais e símbolos brancos, referenciando a arte de tribos africanas, cortada três dedos acima do joelho; um cropped rendado rosa pastel e a doleira preta. Estavaverificando se tinha pego tudo; vinte conto para emergência, cartão de passagem, chave.Tacou tudo na doleira, mas faltava algo... O lenço com as cores do Ilê Aiyê, um amuleto da sorte para o carnaval, todo ano usava, amava as cores e amava quem tinha dado.Olhou ao redor, teve uma leve epifania e lembrou onde tinha colocado. Puxou a última gaveta da cômoda, o pano multicolor entrava em contraste com o branco da gaveta, pegou ele com afeto e prendeu a base do seu cabelo. Estava pronta. Uma última olhada no espelho antes de sair e... perfeita, deu um beijo no espelho e saiu do quarto.Encontrou os irmãos, novamente, na frente da televisão, nem notaram quando ela passou atrás deles em direção a porta.
— Tchau, Nil. Tchau, Carlinhos. Vou passar na casa da vó e só devo voltar amanhã, beijos.Ela estava dando a verificada definitiva antes de sair "o seguro morreu de velho", vovô sempre dizia.
— Tchau, milinha. — Carlinhos se virou para acenar e sorrir para ela.
— Tchau... Vai com essa roupa mesmo? Tá parecendo uma piriguete. — Nilson falou sem pensar muito.
Mirela parou, olhou para ele de baixo para cima, fez uma careta e saiu sem falar nada.
—...Ôxe, não pode nem mais falar nada. — Nilson falou olhando para Carlinhos.
—Nil bobão. — Carlinho falou dando língua.
—...ué? — Nilson ficou confuso, mas não pensou muito, tinha esse costume.
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O abadá de ouro - Caminho de casa
FantasiO abadá de ouro é uma coletânea de histórias sobre um item mágico que realiza o desejo de quem o acha. As histórias estão em desenvolvimento e nessa história você vai conhecer Mirela, uma jovem estudante dividida sobre seu futuro e seu lar.