Um corredor umbroso, afunilado e interminável se estende diante de mim. Há somente paredes cor de romã e incontáveis portas de madeira escura. Gritos, choros e lamúrias de puro desespero ecoam delas. São vozes de homens, mulheres, idosos, crianças... Tenho a sensação de que a qualquer momento agarrarão meus braços e me jogarão para dentro de um desses quartos.
Eu o percorro devagar, mas nada parece mudar, somente se alongar, alongar e alongar. Pouco a pouco, no que seria o final do corredor, uma silhueta preta se molda em uma forma humana.
- Ei! - chamo, parando de andar. - Você po...
O homem torna o rosto em minha direção, porém sua imagem está borrada. Vejo o movimentar de sua boca, mas nada chega a mim.
- Não estou escutando! Fale mais alto!
Um chiado ao longe começa a soar em meus ouvidos.
- Mentirosa.
Finalmente uma voz soa e embora ela se pareça com a dele, está tão perto que sei não lhe pertencer. O chiado agora é ensurdecedor e se mistura aos gritos e choros.
- Filha, vai se atrasar. - A voz se torna feminina.
O ruído se transforma aos poucos em algo agudo e ritmado. Então, várias vozes gritam em uníssono, saindo da boca retorcida em fúria do homem:
- Acorda!
Separo os cílios de súbito, a respiração pesada, a ciência da realidade me atingindo como um banho de água fétida. Tomo meu tempo, enquanto meu peito sobe e desce. Uno as pálpebras novamente. Foi só mais um pesadelo.
- Anda, levanta! - Escuto a voz da minha mãe ao longe. Mais tangível. - Vai se atrasar!
- Já vou.
Relaxo a musculatura no colchão, tomando coragem para ficar de pé e encarar mais um dia. Olho para o teto de gesso, minhas lembranças enevoadas, meus olhos pesados e minha nuca suando que nem o catiço. Talvez só um cochilinho de nada, só mais um pouco. Eu me arrumo rápido...
- ALICE!
AI, JESUS! Reabro os olhos abruptamente.
- Tô acordada, tô acordada!
☆
Quando entro na sala de aula, ainda lânguida pelo sono e pela escadaria que tive de enfrentar sozinha até o terceiro andar, o foco de Melissa se desvia para mim e logo depois Julia torce o corpo em minha direção.
Assim que atravesso a frente da sala, sento-me na cadeira e penduro as alças da mochila no encosto da carteira de Ju. Mel se vira para mim, do seu lugar na esquerda, debruçando-se na mesa lateral com os olhos azuis enquadrados por cachos pretos grossos e um sorriso meigo. Julia gira no assento e apoia o antebraço no espaldar retangular, dando um "E aí, gata?". Eu queria ter retribuído no mesmo nível de entusiasmo, mas tudo o que consegui lhe dar foi um pequeno sorriso.
Ainda me impressiono com o efeito que elas têm sobre mim fazendo absolutamente nada. Basta estarem aqui.
Eu conheci Melissa um dia antes de ingressar no Ensino Médio. Estava andando na rua, voltando da padaria, quando vi os sacos do mercado que uma senhora carregava rasgarem e os produtos despencarem no chão. Quando dei por mim, eu já estava ajoelhada ao seu lado para ajudá-la. Aparentemente, Mel havia tido a mesma ideia. Ali começamos a conversar, enquanto catávamos as compras da velhinha, e no dia posterior eu a vi na mesma sala de aula que eu.
Eis que, minutos depois, chegou a esbelta Julia Alcântara de Albuquerque Albane, com seu estilo despojado, queixo moreno erguido, postura ereta, e se sentou na minha frente. Como a cadeira dela estava com um leve defeito, deixando a mesa inclinada, o lápis dela rolava e sempre, sempre, caía no chão. Já que Melissa estava impossibilitada de pegá-lo por conta do apoio de braço que a embarreirava, era eu quem abaixava para colher o objeto. E foi com Julia surtando de frustração que nos tornamos a força da natureza que somos hoje.
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Vermelho Intenso [ DEGUSTAÇÃO]
RomanceApós um "incidente" que a levou para uma clínica de reabilitação, Alice está pronta para colocar sua vida de volta nos trilhos. Com o que ela não contava era a aparição de um vampiro em sua casa. Um vampiro de língua afiada e que não esconde sua for...