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Existia uma parte de mim que havia ficado feliz com aquela conversa na colina, já havia algum tempo eu me pegava reclusa e convivendo apenas com meus familiares, as conversas mais longas eu tinha com Darius e as vezes, com Kyle, minha prima, minha única prima que era apenas cinco anos mais velha que eu, formosa e delicada, mas com uma força voraz para os negócios da família, era talentosa e poderia ser uma boa curandeira algum dia se continuasse a se esforçar e estudar como faz. Kyle é mais alta que eu, com curvas acentuadas e rechonchuda, seus longos cabelos castanhos claros beiram o loiro, os fios atingiam a altura da cintura e havia uma harmônia gritante entre seus olhos azuis e sua pele clara que ia contra a lógica do constante sol da primavera. Suas feições tinham uma forma mais quadrangular, seu nariz arrebitado combinava com seus lábios que não eram finos, mas que também não eram carnudos... Diria que estão na medida certa. Ela sem dúvida é um exemplo da graça feérica.

Eu estava encostada na cabeceira da cama com um livro em mãos, fingindo estar concentrada na leitura de um romance pouco interessante, mas que ajudava a passar o tempo.

— Conte mais uma vez como foi. — Kyle estava sentada sobre o baú em frente a minha cama, seus olhos brilhavam de curiosidade e ansiavam por cada detalhe do meu encontro não planejado com o emissário das terras Primaveris

Descansei o livro no meu colo, o fechei deixando um de meus dedos para marcar a página que estava - fingindo - ler. Soltei a respiração pesada enquanto a encarava.

— Por que está tão obcecada por isso? — disse em um tom enfanho, observei o entusiasmo crescente em seu rosto e o brilho de seus olhos azul cristal. Soltei um bufo.

— Já te contei essa história duas vezes, duas vezes! — reforcei choramingando, sabia o quanto ela adorava imaginar as inúmeras possibilidades que possivelmente nunca iriam acontecer.

— E vai contar a terceira vez! Ande, pode contar, não poupe nenhum detalhe. — em um piscar de olhos ela já estava na minha cama e não mas sobre o baú onde eu guardava minhas roupas e alguns outros pertences.

E então, contei uma terceira vez, contei o que me levou a colina e o que o levou a colina, a conversa que tivemos e como ele foi gentil em me acompanhar de volta a aldeia, a conversa agradável que tivemos sobre as festividades do calanmai que esta se aproximando e como a aldeia já começava a se preparar para aquele tão esperado momento anual. Se bem que a maior parte estava mesmo interessada com o Grande Rito, um acontecimento em particular que eu gostaria de evitar.

Lucien, por sua vez, havia conseguido mudar drasticamente em apenas uma tarde a visão que eu tivera dele e qualquer impressão ruim que o nosso primeiro contato havia deixado, varreu da minha mente o temor pela minha vida ao sentir a lâmina afiada de sua adaga encrustada de pedras preciosas contra minhas costelas.

Rápido e simples, não resisti a sensação boa que a presença dele me causou, embora... Sacudi a cabeça afastando os pensamentos enquanto me concentrava no meu prato de ensopado em minha frente.

Duas vezes, havia lhe visto duas vezes apenas, não havia motivo para comoção, não era nada. Não é nada. Me distrai com a conversa entre meus primos e meus tios que observavam os filhos atentamente com aquele olhar atento e afiado. Os pratos passando para lá e para cá, as bocas nunca paravam quietas seja pela comida ou pela conversa.

— Este ano as festividades serão ainda maiores do que no ano passado, quem sabe eu e Mira possamos ir para as colinas mais ao leste. — Kyle sugeriu sutilmente, eu engasguei, não costumava sair para o Calanmai.

Ousada, minha prima está cada dia mais ousada.

— As comemorações da aldeia são lindas, por que esse desejo de ir para as colinas? — Minha tia, com um tom mais indiferente perguntou sem tirar a atenção do prato. Ela se voltou para mim. — Tem algo a ver com o emissário? — Talvez, só talvez... Houvesse uma pontada de desprezo.

Eu sacudi a cabeça.

— Por que teria algo haver com ele? Vocês vêem coisa onde não tem, me faz a cortesia de me acompanhar uma vez e já acham que há algo a mais. — bufo ao resmungar, sabia o motivo da sua pergunta, os vizinhos comentavam, as línguas maiores do que as pernas, fofoqueiros desocupados, é isso o que são.

— O senhor Lucien é um macho muito bonito, seria natural se interessar por ele. Além de que ele tem bastante influência e uma posição de destaque. — Minha prima se pronunciou, minha expressão deveria estar confusa, já que meu tio coçou a garganta fazendo nossa atenção se dirigir a ele.

— Kyle está dizendo, que não teria problema se você se interessasse por ele, seria uma boa união. Mas não significa que estamos empurrando você para algo que não queira, ou que estaríamos de acordo. — meu tio tentou explicar da melhor forma possível, todos o olharam sem entender a última parte, exceto minha tia.

Revirei meus olhos deixando meus talheres sobre o prato. Minha tia ainda encarava o prato como se fosse capaz de quebrar a louça com apenas com o olhar, seu maxilar travado e a ponta dos seus dedos esbranquiçados devido a força que colocava nós talheres.  

Olhei para todos ali, na minha idade meus tios já estavam casados e tendo seu primogênito, Darius. Sempre achei que me casaria com um empata como eu, um macho bom e descente de algum clã distante, talvez em uma terra em que o sol brilhe tanto quanto aqui, na corte estival ou crepuscular talvez, sacudi a cabeça, o desconforto mais uma vez deveria estar estampado em minhas expressões.

— Irei falar apenas uma vez, está bem? O motivo de Kyle querer ir às planícies altas não tem nada haver comigo, ou senhor Lucien, sim, ele é um macho belo e gentil, mas não transformem isso em algo que não é, ou maior do que é. Deixem as especulações e ignorem os vizinhos que eles pararam também. — a firmeza em minha voz era semelhante a da minha tia, e não era mentira, esperava que aquela ilusão fosse deixada de lado.

Era de se esperar que para uma família que presa pela existência dos seus, pela preservação dos dons que temos, haveria mais imposição de limites. Não é segredo para ninguém o que acontece durante o calanmai, o rito, o rito em que não apenas o Grão Senhor, mas também outros feericos ajudavam a renovar a magia nas terras, claro que não na mesma proporção, mas ainda assim...

Isso ainda me deixa um pouco surpresa as vezes. Meus tios não impedem que seus filhos se divirtam, ou eu mesma me divirta como bem entender – não que eu fizesse algo – desde que lembrem que o compromisso com o nosso Clã vem em primeiro lugar. Os casamentos são arranjados até mesmo com a escolha de acordo com o futuro casal, meus tios por exemplo, tiveram seu casamento arranjado, mas namoraram e noivaram no seu tempo, o amor estava presente ali. A parceria deles veio depois.

Ao contrário de meus pais que eram parceiros desde o primeiro olhar, minha mãe é empata, já meu pai não, a magia e o dom veio tão sorte em mim que nos primeiros meses de vida sempre que chorava, fazia meu pai, minha mãe e qualquer outro se debulhar em lágrimas. A manifestação só crescia, reivindicando meus olhos para si como uma porta escancarada ao mundo que eu era algo além do que aparentava ser.

— Então combinado. — a voz de meu primo me fez despertar. Ergui as sobrancelhas em uma pergunta silenciosa. — Nós três vamos as planícies altas para o calanmai.

Meu olhar se intercalou entre Darius, Kyle e meus tios, por fim, sacudi os ombros deixando o assunto de lado.

Acho que será divertido.

Corte de Ouro e TormentaOnde histórias criam vida. Descubra agora