INFÂNCIA

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Os Alencar recebem a igreja toda semana, para reuniões, onde os irmãos compartilham o reino de Jesus uns com os outros.

— Que comportada a sua menininha! — Diziam as pessoas que cumprimentavam o casal Alencar.

Depois que a reunião acabou, as crianças queriam se reunir do lado de fora para brincar um pouco. Lia precisava conferir com a mãe se estava liberada. Ada estava conversando com outras mulheres casadas. Elas partilhavam umas com as outras, virtudes espirituais que adquiriram com o passar dos anos. Ela as escutava, mas não tinha nada a acrescentar.

— Mamãe, posso brincar com as outras crianças? — Falou Lia, bem baixinho.

— Lia, você tem aulas de etiqueta daqui a pouco e nós, mulheres Alencar, não faltamos a nenhum compromisso previamente estabelecido.

A mãe usa palavras demais para se expressar.

— Só um pouquinho, por favor? — Disse Lia, um pouco entredentes para não atrapalhar.

— Está certo, mas ficará pouco.

Por fora, Lia só assentiu com a cabeça, mas por dentro se imaginava correndo, gritando e pulando em cada sofá recém encapado com tecido florido da melhor qualidade — Os Alencar sabem como estofar seus sofás, são comerciantes de tecidos da mais alta categoria! Bom, pelo menos é o que diz o slogan. Mas ficou só no pensamento mesmo.

Do lado de fora, todas as crianças tinham feito um combinado: iriam escalar o portão de ferro do Sr. Rodrigues, que morava ao lado e estava conversando com o pai de um deles.

— A gente vai subir e pular do outro lado – disse Jonas, o mais velho das crianças.

— Mas e todos aqueles gansos que ele tem? — Perguntou Felícia, a melhor amiga de Lia.

— O que têm eles?

— Eles vão bicar a gente, ué! — Respondeu, como quem dizia algo óbvio.

— Se não tem coragem, fica com sua amiguinha Lia... — Debochou Jonas e todas as crianças riram.

Lia não gostou, porque sabia muito bem que correr dos gansos poderia ser uma aventura e tanto, mas reconhecia que a aventura mais perigosa mesmo, seria enfrentar a fúria da dona Ada, que não ia gostar nada, nada daquela ideia. Eles, é claro, escalaram o portão de ferro e pularam o muro, enquanto Lia vigiava se algum adulto não estava chegando.

— Olha, uma piscina! — Gritou um deles.

— Piscina? — Perguntou Lia do outro lado.

— Sim, tem uma piscina aqui! — Gritou Felícia, parecia tão entusiasmada que o som seguinte só podia ser dela pulando com tudo na água.

— Puxa, hoje está bem quente... ia ser legal tomar um banho de piscina... — disse Lia para si mesma.

As outras crianças não se importaram com Lia do outro lado do portão, só queriam mesmo se divertir. Mas seguindo sua ótima memória, fez a pergunta que você provavelmente está se fazendo agora:

— Mas e os gansos?

Ninguém respondeu.

— Gente, e os gansos? — Gritou mais alto.

As outras crianças estavam tão entretidas brincando na piscina que nem se deram o trabalho de prestar atenção no barulho do lado de fora. Lia, como toda menina curiosa, resolveu subir um pouquinho o portão, para conseguir ver o que os amigos estavam fazendo. Os sapatinhos pretos brilhavam em contraste com a meia-calça branca. O sol estava tão forte e a única coisa que ela gostaria de vestir era um desses vestidinhos leves de verão. Mas para seus pais a aparência é tudo.

Pé ante pé, escalou o portão com muito cuidado. Não sabia bem o que estava fazendo, mas achou que era melhor dar uma conferida no que acontecia além dos portões do Sr. Rodrigues. Quando chegou ao topo viu todos brincando na água, sentiu um pouco de inveja e imediatamente lembrou da voz do pastor dizendo que inveja é pecado e antes que se arrependesse de pecar, se sentiu aliviada por não ter entrado na ideia dos amigos.

Eles, enquanto brincavam, não se deram conta de que cinco gansos enormes estavam os rodeando. Não tinha saída. Eles precisavam de um daqueles planos infalíveis para não levarem uma bela carreira de ganso. E se você é uma dessas pessoas, que já viveu a aventura de correr de ganso, sabe muito bem que eles são rápidos e que a bicada deles dói muito!

— Gente! — Lia gritou para os amigos.

Alguns deles a viram em cima do portão, mas estavam tão acostumados a ignorá-la, que nem se importaram com o grito.

— Geeeeeeenteeeeeee!

Todos a olharam. E antes que ela se sentisse vaidosa por ter plateia, disse:

— Os gansos estão pertinho... vocês estão presos!

Jonas era o líder, então colocou a cabeça para pensar:

— Calma gente, calma... vamos dar um jeito...

Eles esperaram um pouco e a ideia veio:

— Você! – Jonas apontou para Lia. — Você, vai distraí-los enquanto damos um jeito de sair daqui.

— Nem morta! Ficou louco? — Lia não tinha tanto medo dos gansos assim, mas da sua mãe...

— Não há tempo pra bancar a medrosa, Lia! Você é uma de nós ou não?

— Eu sou... bom, mais ou menos...

— Desça e chame a atenção deles, quando eles correrem atrás de você, suba de novo e a gente vai logo atrás.

— Essa ideia parece boba. — Afirmou Lia.

— Vai dar certo! — Disseram as crianças.

— Está bem, está bem... mas se minha mãe brigar comigo, vou culpar cada um de vocês!

Nenhum deles sentiu medo.

Lia começou a descer pelo lado de dentro e chamou mesmo atenção dos gansos, mas não pelo motivo certo. O vestido cheio de babados da garota agarrou em uma das pontas do portão e ela ficou pendurada. Balançava os pés com tanta força que o portão rangia. Ela gritou também, tanto que todos os adultos saíram da casa para conferir o que estava acontecendo.

As outras crianças conseguiram sair ilesas da casa do Sr. Rodrigues, Lia, por outro lado, precisou da ajuda do pai que estava tão aborrecido, que mal falava com ela. Resultado: ela arranhou as costas, mas só se deu conta mais tarde na hora do banho.

Se você é uma criança, sabe muito bem que muitas vezes nos machucamos e só percebemos o ocorrido na hora do banho. O que acontece com a dor durante este tempo? Será que ela saí para dar uma voltinha?

A cena a seguir é aterrorizante. A hora do banho. Sendo criança ou não você consegue imaginá-la sozinho. Por causa disso, não descreverei tudo com muitos detalhes, foi um momento difícil de ver. Destaco somente, um ponto importante nesta história:

Ada estava dando banho na menina que àquela altura estava quase irreconhecível. Já não tinha mais o ar de menina educada que passa horas aprendendo coisas bobas como etiqueta, que faz intermináveis leituras chatas, que estuda latim — esta língua morreu, por que os intelectuais insistem em desenterra-la? — e sabe onde colocar o guardanapo de pano na hora do jantar.

Sua mãe fez a seguinte declaração, que mostra a que pé estamos nesta narrativa:

— Se arrumar muitos machucados e eles marcarem sua pele, — olhava para as costas arranhadas — como alguém aceitará se casar com você?

— Desculpe mamãe, foi o Jonas... Ele sempre fica implicando comigo porque não faço como as outras crianças.

— Bom, você sabe como são os rapazes... — Disse Ada relaxando um pouco a voz.

— Como?

— Quando um garoto implica muito é porque ele gosta de você...

Caixa de Casamento - CONTOOnde histórias criam vida. Descubra agora