XXXIII

1.6K 320 93
                                    

Dylan on

Uma das coisas mais difíceis que podemos fazer é nos despedir daquilo que mais amamos.

Eu nunca mais entraria naquele forte. Nunca mais percorreria o caminho do meu quarto para o escritório. Nunca mais me sentaria em minha cadeira e assinaria papéis. Nunca mais treinaria meus homens ou instruiria meus subordinados.

Eu também nunca mais veria Angel jogada no divã vermelho.

Nunca mais transitaria entre aquelas barracas vermelhas ou vestiria minha farda. Nunca mais empunharia minha espada em duelos oficiais ou em guerras e conflitos futuros.

Era como se uma parte de mim estivesse morta.

Uma vida inteira. Esse tinha sido o tempo que eu dediquei ao exército.

Mais do que a vida de meu próprio irmão ou pai. Era esse o valor que o exército tinha para
mim.

Alergia genuína. Era isso que eu tinha sentido quando eu fui promovido a comandante. Era isso que eu sentia a cada ordem dada, a cada documento assinado, a cada meta de treinamento cumprido. Era assim que eu me sentia porque era impossível não me se sentir feliz no lugar que eu chamava de casa.

E eu era bom. Eu era excepcional em meu trabalho. Eu sabia cada regra, cada parte de cada contrato e cada cláusula. Sabia tudo que precisava saber e se as pessoas prestassem atenção, elas veriam isso com facilidade.

Havia treinado minha postura, havia treinado meu corpo e agora tudo que eu havia feito parecia há anos de distância. Parecia um sonho longínquo ou uma vida passada ou uma meta inalcançável.

Uma casa no campo. Era isso que tinha me restado dos bens que eu tinha acumulado ao longo dos anos e que eu não me preocupava em usar ou cuidar porque eu estava sempre ocupado com o trabalho.

Uma casa velha, com pertences de minha antiga família encaixotados e largados por aí. Uma casa que eu não me lembrava de visitar desde que entrei no exército.

Tudo que fiz nos últimos dois dias desde que deixei Angel no castelo foi encontrar a construção há alguns quilômetros da capital, na área rural e tentar ocupar minha mente.

Havia restaurado o encanamento, arrumado as telhas, varrido o chão imundo e colocado um colchão no que viria a ser meu quarto. Eu ainda nem tinha uma cama de verdade.

A sala tinha pouquíssimos móveis velhos e a cozinha nem poderia ser chamada de cozinha.

Era uma casa pequena, mas suficiente para um homem só.

Era isso que eu era agora.

Um civil.

A única coisa que nunca pensei que seria.

A coisa que eu, mesmo sem perceber, lutei para não ser, para não me tornar. Era como se o garotinho sonhador que eu já fui um dia, o mesmo que analisava soldados lutando com anseio e tentação, me olhasse com confusão e desprezo.

E quando o primeiro trovão preencheu meus ouvidos, eu temi por alguns instantes. Uma tempestade estava começando a cair. Ainda bem que eu já havia arrumado o telhado.

Se eu tivesse um espelho talvez eu tivesse tempo de me olhar nele e ver meu reflexo estranho.

A calça preta e a blusa de manga comprida branca eram estranhas para quem só vestia a calça fardada e a camiseta branca.

Parecia que eu vestia uma roupa que não era minha. Eu me sentia em uma fantasia.

Talvez eu fosse a fantasia, porque eu também não me reconhecia.

A barba negra que despontava era também curiosa para uma pessoa que nunca a deixava crescer e os cabelos desalinhados pareciam combinar com minha vida igualmente desalinhada.

Eu me preocuparia com meus pertences depois. Se é que eu tinha alguma coisa que realmente valesse algo. Tudo que eu tinha estava em meu quarto no forte e eu provavelmente nunca pisaria lá novamente, então não acho que faça alguma diferença.

Acho que nunca estamos prontos para deixar uma parte nossa para trás. Acho que por mais que tenhamos nos preparado, nunca é fácil.

Eu não era mais o comandante do acampamento e por algum motivo eu não sabia o que havia sobrado. Eu ainda era Dylan, mas quem realmente era esse cara?

"Tudo isso por uma garota?". Eu quase ouvia a voz de meu pai falando na minha cabeça. Quase ouvia seu desdém.

-Você teria gostado dela, mamãe-murmuro com um sorriso triste nos lábios enquanto me sentava no chão da sala vazia, ouvindo o barulho da chuva intensa lá fora.

Não era qualquer garota.

E ir embora daquele castelo tinha sido a coisa mais difícil que eu já fiz na vida. Ela precisava dos cuidados que só aquele lugar poderia fornecer e eu não podia ficar lá porque agora eu já nem tinha um título para tal. Não podia voltar para o acampamento também, então voltei para a casa antiga da família que há muito estava abandonada.

Encontrei um grande vazio aqui a não ser pelas pouquíssimas caixas de papelão espalhadas que eu reuni e amontoei no canto da sala. Eu não tinha tido a paciência de olhá-las ainda.

E quando olhei para o lado, vi uma goteira insistente que me fez bufar. Eu tinha arrumado as telhas, mas aparentemente não todas, né?

Eu teria muito trabalho mesmo com esse lugar.

Ainda mais nessa chuva. Parecia que o mundo ia acabar com a quantidade de trovões ridiculamente altos que preenchiam meus ouvidos.

Era uma verdadeira tempestade.

Talvez tenha sido por isso que eu franzi o cenho quando ouvi batidas insistentes na minha porta. Batidas repetitivas e fortes que me fizeram levantar quase de imediato.

Seria alguém perdido?

O que infernos alguém fazia fora de casa nessa chuva?

Assustado, me apressei até a porta e a abri com certo receio, me assustando com a quantidade de ventos barulhentos e de raios que cortavam o céus.

Mas lá estava a figura ensopada a minha frente.

Angel.

A mulher vestia uma calça de montaria e uma blusa branca que já estava transparente graças à tempestade.

Ela tinha...?

Angel tinha cortado os cabelos.

Agora na altura dos ombros, os cabelos escarlate contornavam seu rosto de forma ainda mais harmônica, dando-a a um ar mais maturo e centrado.

Ela me encarava com a perseverança de ferro e com uma determinação que me deixaram imóveis por longos e intermináveis segundos enquanto eu a analisava centímetro por centímetro, quase não acreditando em sua presença ali.

Angel Haylock estava bem em minha frente.

Princesa EscarlateOnde histórias criam vida. Descubra agora