Prólogo

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CIDADE DE NOVA IORQUE, ILHA DE MANHATTAN.
Inverno, 20 de dezembro de 1918.

Em uma posição privilegiada, bem no centro da parede bege e lisa de meu quarto, em frente à cama e acima do arranjo de lírios do campo, como em um altar, descansava uma imagem minha. Nunca me cansei de admirar aquela peça – não poderia ser chamada de narcisista, se a adoração não era a mim mesma, mas ao meu captor. No final da página, em letras bem pequenas, descansava uma caligrafia elegante. Athena of J. Potter.

Minha jovialidade estava ressaltada pelos traços cuidadosos, atenciosos e justos do artista. Cada curva de meu corpo jovem de 18 anos delicadamente expressa. Muita pele exposta, tecido revelador, um livro de poesia árcade em minhas mãos. O grafite barato que sempre temi que o tempo roubasse ainda estava no papel. Se chegasse perto demais com o nariz, sentiria o sal. Ainda cheirava a mar.

Nessa casa que respira arte, é suposto que não haja uma parede sequer sem algo pendurado. Diversas fotografias em preto e branco da última década enfeitam o topo de alguns dos móveis; incontáveis desenhos feitos à mão emoldurados, quase todos de um mesmo artista; quadros em cada canto que a vista pudesse alcançar (algumas dessas criações eram minhas, inclusive); minha casa dorme e acorda com música; a vista da janela – o jardim de primavera que é meu orgulho – facilmente serviria de inspiração para Renoir, Manet ou van Gogh – me atrevo a dizer que este último choraria diante dos meus novos girassóis, eu tenho certeza.

– E esse quadro?

Eu conheço a localização de cada decoração da casa. Embora com o passar daqueles poucos anos houvesse reajustado ou realocado pela parede as velhas melhores lembranças dessa jornada em prol de novas imagens, eu memorizava a posição de cada peça. Então, quando minha jovem companhia foi curiosa o suficiente para perguntar sobre algo específico no fim da escada que dava para a sala de estar, no térreo, eu já imaginei do que se tratava. Apenas uma coisa havia lá.

Desci os degraus amadeirados devagar, parando ao lado de um garotinho inquieto que encarava o primeiro quadro da parede da escada.

O recorte de jornal em tons de preto, cinza e branco saudou a nós dois através da lâmina de vidro.

O filme de 1912 trabalhou em minha mente como uma máquina aflita. Todas as pessoas, os olhares, os cômodos, móveis. Toda a água que me cobriu pelo que pareceu uma eternidade. Uma mão envolvendo a minha. A submersão. Evitar a todo custo a cor azul. Meses sem conseguir olhar o mar. Os pesadelos que se sucederam. 

A chuva havia cessado. Estavam todos no canto da escadaria de um prédio público. Olhos na Estátua da Liberdade.

Uma mulher baixinha e seu companheiro estavam unidos por um só cobertor, que eu me recordava ser vermelho. À esquerda deles, se algum pedestre que passasse pela calçada tivesse sido analítico o suficiente, teria sido possível perceber que uma moça loira e outra negra tinham as mãos unidas dentro do bolso do casaco grande da primeira. Na frente delas, dois homens altos estavam sentados próximos, as mãos também unidas, mas dessa vez, detrás de um guarda-chuva fechado. Ao lado deles, na frente do casal do cobertor, outros dois jovens estavam muito próximos, ambos com uma mão apoiando o queixo enquanto o braço livre do homem cercava a mulher.

Na manhã seguinte a que cheguei a Nova Iorque, me vi um tanto surpresa quando tomei em mãos um exemplar de um dos jornais da cidade: aquele pequeno grupo de sobreviventes estava retratado no canto de uma das fotografias da primeira página, bem abaixo da imagem do então desaparecido Capitão do RMS Titanic, Albus Dumbledore. Eles haviam feito o máximo para não serem capturados em uma fotografia para o The Evening Sun para, ao fim, serem surpreendidos por algum fotojornalista muitíssimo discreto do The New York Times.

As feições de ninguém do grupo estavam nítidas o suficiente para que qualquer um deles pudesse ser reconhecido – a imagem pouco nítida dos jornais da época e os cabelos molhados daquela eu de 1912, que cobriam a maior parte do meu rosto, garantiram isso, o que foi um grande alívio.

Eu me lembro bem de quando peguei uma tesoura velha e recortei a fotografia – apenas ela, sem manchete ou qualquer outra parte da página – e guardei até que tivesse juntado dinheiro suficiente para pô-la em um quadro; e quando finalmente o fiz, foi a primeira coisa a pendurar na parede da casa. Aquele quadro abrigaria, pelos anos que se sucederiam, a lembrança reconfortante, – embora que, no fundo, um pouco dolorosa – de que eu estava viva. O lembrete de que não estou sozinha. De que havia remanescido.

– Mamãe?

Harry e sua aparência adorável.

Suspirei. O ergui pegando no colo e estalei um beijo em cada uma das bochechasrosadas, o que o fez rir.

Seus olhinhos verde-esmeralda idênticos aos meus eram a única prova visível de que ele havia nascido de mim.

Mordi os lábios quando um aperto me atingiu. "Parece tanto com ele..."

Com o rosto enterrado na curva do meu pescoço, Harry esperava pacientemente por uma resposta, mas eu não tinha certeza a respeito do que poderia contar ou por onde deveria começar a série de relatos sobre o acontecimento que mudaria minha vida para sempre.

Remanescentes • JILY/Titanic⚓Onde histórias criam vida. Descubra agora