Eu me lembro da primeira vez que saí com Paola como se fosse ontem. O pedido foi completamente constrangedor, mas a noite foi incrível, assim como todos os momentos que tive com ela até hoje. Todas as vezes em que toquei em seus finos cabelos, senti suas bochechas antes rosadas e ouvi sua voz leve como seda. Ah, the memories. Nem parece que faz apenas três meses que voltamos da Austrália após dois anos morando juntas no país. Todo esse tempo só me fez amá-la mais e mais, e já não há aparência que nos separe. Já a morte, talvez.
Não esperávamos ter que retornar tão cedo, mas logo quando descobrimos o câncer de Paola, voltamos imediatamente para o Brasil para podermos ficar perto de nossas famílias se qualquer coisa acontecesse. Mesmo estando estável, o medo e o desespero ainda predominam no clima de nosso apartamento, pesando o ambiente. Passo todos os dias preocupada com sua saúde, sempre perguntando sobre ela, esperando que a qualquer hora algo terrível aconteça e eu nunca mais veja o amor da minha vida sorrir para mim de manhã.
O tratamento é intenso, pois a doença não reage bem a remédios, mas pode ser controlada. Com isso, ela vem ficado mais magra, mais fraca, mais frágil. Vejo sua pele cada vez mais pálida, sua fala aos poucos se desanimando, seus fios de cabelo caindo e noto em seu rosto um olhar mais cansado, mais angustiado. Como uma boneca de porcelana preciosa, cuido dela o máximo que posso, buscando-a de suas consultas e fazendo tudo o que é possível para fazê-la melhorar. Paola finge que está tudo bem, escondendo suas inseguranças e se fechando mais a mim. Ela me fala que tem esperanças de seu linfoma se curar, porém sei que no fundo, ela também tem medo. Ela também está assustada. Ela também precisa de mim. And I need her.
O dia em que ajudei-a a raspar o próprio cabelo foi torturante, entretanto um alívio para suas maiores angústias. Agora, as pessoas a julgam muito por sua nova aparência, obrigando-a a usar faixas para esconder sua falta de cabelos e roupas largas para disfarçar seu corpo esquelético. Não importa o que ela faça, todos os olhares ao nosso redor continuam a perturbá-la e incomodá-la, como se ela fosse a culpada de tudo isso. O julgamento alheio não acontece somente ao encararem-na, mas também quando conversam com ela. Desde nossa mudança, nossos vizinhos tratam-na com rispidez, indignados que ela não se adequa à "mulher que ela deveria ser".
I'm completely pissed off. Já estou cansada de ver isso acontecer e me sentir inútil por não tentar amenizar a situação. Eu a conheço melhor do que qualquer um, amo-a mais do que qualquer coisa, e não posso ficar de braços cruzados vendo meu sol se apagando aos poucos. Sinto falta de suas risadas, de nossos abraços, de nossa vida. E eu não quero que ela passe por tudo isso sozinha. Eu prometi a ela como sua namorada que daria tudo de mim, e aqui estou eu, impotente. Mas isso muda hoje. Eu estou 100% determinada a trazer sua alegria de volta, por bem ou por mal.
Enquanto Paola está no trabalho, termino de organizar meus projetos em meu estreito escritório e vou para o banheiro, a coragem tomando conta de meu corpo e mente. I need to do this. For her. Abro os armários e procuro nosso aparador em meio a seus remédios e produtos de pele, suspirando fundo ao pegá-lo na mão e ligá-lo. O barulho das lâminas penetra meus ouvidos de uma maneira perturbadora, porém, antes que eu pudesse hesitar, passo a máquina pelos meus cachos, deixando os cabelos negros caírem ao chão, pesados. Olho para o espelho em completo choque, mas continuo cortando minha raiz aos poucos, até que não haja mais cabelo a ser aparado.
Passo a mão pela minha cabeça, analisando sua nova textura e me acostumando com a ideia. There's no way back now. Estranhamente, não me sinto tão mal quanto achava que me sentiria. O pensamento de fazer minha namorada mais feliz é muito maior do que a tristeza de perder meus cabelos, que vinham crescendo fazia bons anos. Eles vão crescer de volta algum dia, então não há com o que se preocupar. Tenho quase certeza de que serei ainda mais julgada agora do que com meu antigo cabelo crespo, mas vamos passar por esse momento juntas. É melhor viver o agora do que se limitar ao futuro.
Limpo o banheiro de todos os grossos fios espalhados pelo piso, varrendo as memórias de um passado marcante e abrindo portas para novas experiências. Tento evitar todos os pensamentos ruins, mas alguns ainda penetraram minha consciência. "E se ela não gostar? E se ela desistir de mim? Como serei tratada na rua? Como meus parentes vão me ver agora?". Essas preocupações me deixam ainda mais ansiosa pela chegada de Paola, impedindo-me de focar em outra atividade que não seja esperar por seu regresso à nossa casa.
Enquanto arrumava a mesa para o jantar, colocando os pares de talheres em cima de nossa pequena mesa de vidro, ouço passos cansados do outro lado da porta, a maçaneta se virando lentamente após um longo dia de trabalho. Largo o que estava separando e ando na direção de Paola, seus olhos se surpreendendo ao não verem mais meus cachos volumosos. Sua expressão abatida logo se transforma em uma fração de felicidade.
- Babe? What happened? - ela pergunta, largando sua mochila no corredor e correndo até meus braços - Why'd you do that?
- Why not? - respondo com um sorriso, passando meus dedos por seu queixo – Eu sei que as coisas vêm sendo difíceis, então fiz isso por você.
- Você não precisava – ela diz em um tom preocupado – Ya know that.
- Claro que eu precisava. - Elevo um pouco o tom de minha voz, encarando-a com grandes olhos - You are everything I've ever wanted. I can't let you down like that.
Seus olhos marejam com lágrimas, e ela me abraça com uma força que eu não sentia faz muito tempo, e eu retribuo na mesma sintonia. Ela sabe que daqui para frente será diferente. Que não está mais sozinha. Que nunca mais estará.
- Ya know I love ya, right? - Paola fala entre meu pescoço e seu choro.
- We're gonna get through this. Together.
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Pequenos Contos
Short StoryContos pequenos sem temas específicos, apenas histórias curtas para ler rapidamente.