1
Este documento inicia-se com uma declaração simples: Me chamo Olin. Meu sobrenome, deixo para mencioná-lo logo em breve.
Antes de revelar os sentimentos mais abissais de minha alma, aqueles que sobrepujaram os desejos pútridos de minha carne, de minha antiga cidadania, quero mostrar ao leitor, aquele que me lê com calma ou com pressa, de onde vim, quem sou e como estou aqui.
Em primeira instância, alegro-me com a possibilidade de fazer verter da caneta a tinta que forma minha caligrafia. Não sou adepto à escrita, pois vejo nela um tesouro enigmático que não consigo decifrar, mas, de tempos em tempos, dou-me a chance de jorrar sobre a folha os pensamentos que encarquilham o tecido de meus pensamentos. Creio que se escrevo isto sobre a bancada da biblioteca mais antiga deste palácio, é dado pela misericórdia de alguém maior que esta construção.
Eu, Olin, um rato desonesto, ironicamente escrevo o documento mais honesto de toda a minha pequena vida.
Ternize era o nome da cidade em que nasci. Por muitos, a pior de todas, por alguns, tudo o que tinham. Ternize era sinônimo da torção de humor e de nariz. Embora fosse grande centro de comércio, com movimento de estrangeiros que iam e vinham, fazendo das ruas um formigueiro humano, quando o sol se punha, nada restava além da infelicidade.
Ternize era horrível, e como um dia eu fui seu cidadão, também era horrível.
A quem diga que nascer em Ternize o fazia Ternize para o resto da vida. A confiança era tirada de si quando você era tirado de sua mãe. Não havia honestidade naquela pequena cidade, nem ordem ou paz. Sempre havia algo a se comentar, e quando comentar não era o suficiente, sempre haveria algo a se queimar. Cidadãos de Ternize eram atraídos pelo fogo de uma revolta tão facilmente quanto uma mosca por uma lanterna. E sempre havia alguma manifestação na cidade, que varria os corações pacíficos com as chamas da rebelião.
De fato, certas revoltas eram boas, como o grande infortúnio da corrupção dos cobradores de impostos. Apareciam à soleira de sua casa com o sorriso mais claro de todos, e suas vestes eram sempre as mais impecáveis, entretanto, só cidadãos de Ternize conseguiam enxergar a sujeira que se acumulavam nos dedos destes senhores. Se eu, Olin, fui um rato digno da atenção odiosa do honesto, quem dirá um cobrador de impostos, que fazia-se de honesto, mas era apreciado pelos ratos.
Entremente, não eu. Um dia até tentei estipular um acordo, porém, eles preferiam roubar o honesto, sozinhos.
Ternize criava homens e mulheres para serem Ternizes. Ou, melhor dizendo, Terrares. Este era o sobrenome mais comum em Ternize, que também era o meu. Olin Terrares, cidadão de Ternize, o rato mais sujo que rasteava por dinheiro, por comida, por facilidade e por felicidade.
O leitor pode imaginar mil contos que antecediam esta minha história, mas não permita-se ir muito longe. Sempre fui rato, desde que me conheço como ladrão... digo, homem. Meus pais nunca aprovaram minha prática, e mesmo que nem sempre o dissessem, falavam com o olhar.
Não é como se eu amasse ser um rato, mas Olin Terrares o fora por tanto tempo, que nem ao menos lembrava-se do que antes era.
2
Minha cidade natal havia sucumbido à uma praga terrível, o orgulho. Lembro-me de minha mãe sendo levada, e meu pai, morto pela espada. Um império se sobrepujava a outro, e assim por diante, numa guerra infindável, uma valsa sanguinolenta, uma orquestra caótica. O palco era a minha casa, a minha cidade, e fora a apresentação teatral mais real de que eu já havia participado.
Estive preso nos escombros de minha casa por dois dias, sorvendo o ar escuro com cuidado e sobrevivendo das gotas de água suja que escorriam pelas vigas acima de minha cabeça que, a qualquer momento, esmagariam meu corpo, e assim levar-me-iam de volta ao pó, como uma uva nas mãos do enólogo.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Rei e o rato
Historia CortaSua figura destoava completamente do cenário, como a letra mais linda em meio à caligrafia torta. Como um floco de neve no dia mais quente; a nota salgada numa sobremesa; o morcego que sobrevoa a floresta na alvorada; a ovelha em meio à alcateia; o...