Todos os dias faço esse mesmo trajeto, e é a parte mais calma do meu dia. Sem ser carregada com problemas alheios de minha família ou ser impactada com a cobrança e expectativa na escola. É o único momento em que posso colocar o meu fone de ouvido com a certeza de que não vou ser interrompida, e me envolver no ritmo de minhas músicas combinadas com meus passos, ou só a batida de meus pés. Muitos reclamariam pelas 01h30 de viagem de ônibus todos os dias para ir para a escola, mas para mim, é uma dádiva. Até que essa dádiva é empurrada com força quando um menino se senta ao meu lado.
Ele entra no ônibus e vem em minha direção, devia estar procurando um lugar para sentar, já que tem muitos bancos na janela ainda disponíveis no começo da viagem, mas seus olhos estão fixos em mim, ou no banco ao meu lado, não sei, até que ele vem e se senta.
Com o seu movimento, instintivamente me arrumo, chegando um pouco mais para o canto. Não consigo deixar de esboçar em minhas sobrancelhas um franzido, como um reflexo pela minha paz que acaba de ser chocada com a sua presença. Se tem tantos bancos de janela vazios, por que sentar ao meu lado? Então um misto de medo e desconfiança começa a se passar em minha mente, afinal não se pode confiar em homem nenhum, até que-
- Oi. - Ele diz, com convicção, me encarando.
Não ouso olhar para o lado, ou para seu rosto. O máximo que posso fazer é olhar para o banco em suas frente, numa tentativa falha de direcionar os meus olhos para alguma parte dele. Hesito por uns minutos, pensando se devo ou não responder, até que respondo:
- Oi.
Sem tirar o fone ou abaixar o volume da música, só tento me concentrar no que está acontecendo ao meu redor, a fim de prever qualquer movimento vindo dele e programar o meu, e ele continua:
- Duas aulas do múmia hoje em, vai ser difícil aguentar.
Com esse comentário, finalmente decido olhar para o lado, e tirando o fone de ouvido da orelha que correspondia ao lado que ele estava sentado, foco o meu olhar na camisa do uniforme que estava, até então, escondida pela sua jaqueta. Ele era da mesma escola que eu. Me pergunto por que não o reconheci, até que respondo.
- É uma pena que a didática dele seja tão pobre, por que a matéria é muito interessante. - Digo finalmente subindo o meu olhar para o seu rosto, que ainda me parecia irreconhecível, apesar de seus olhos encararem os meus como se já os conhecessem.
- É verdade. - Ele conclui e se vira para frente, agora em silêncio.
Também me viro para frente, encarando as costas do banco pixado a minha frente, e espero alguns segundos por mais algum movimento, até que coloco de volta o fone de ouvido.
O menino passa o restante da viagem em silêncio, o que agradeço, até que, chegando no ponto da escola, ele se levanta e, espera eu me levantar para seguir, e assim que descemos do ônibus, se posiciona ao meu lado e andamos até a sala. Chegando na sala, ele entra primeiro e se senta na carteira ao meu lado. Me sento em meu respectivo lugar, e me pergunto se esse sempre foi o seu lugar, e por que eu nunca o notei. O que não é tão estranho assim, já que não conheço nenhuma pessoa nesta escola desde dois anos atrás, quando cheguei.
A aula segue normalmente, não teria nenhuma diferença, se não fosse pela minha atenção repentina a presença dele. Estava consciente de seus movimentos, de sua existência, e isso me incomodava. Nem sabia o seu nome.
Ao final da aula, arrumei minhas coisas e me levantei para ir para casa, e ao me aproximar da porta, percebi a jaqueta preta que, no ônibus escondia o seu uniforme, agora encostada ao lado da porta. Quando chego a porta, ele se põe ao meu lado e segue o caminho comigo para o ponto de ônibus. Em completo silencio.
Meu fone já estava cobrindo meus ouvidos do mundo exterior, como de costume, contudo, meus olhos estavam atentos ao menino sentado ao meu lado no ponto de ônibus. O sol já tinha se escondido, e a maioria dos alunos já tinham entrado em seus respectivos ônibus ou seguido o seu caminho a pé, enquanto nós permanecíamos lá. O ônibus de meu bairro era o último a passar, me colocando quase sempre sozinha, ou era o que eu pensava, até notar que ele provavelmente morava no mesmo bairro que eu, já que entrou no ônibus num ponto ainda perto da minha casa. Eu encarava o céu escuro e fechado para as estrelas que poderiam estar iluminando a noite, mas não estavam, quando o ônibus já estava perto de chegar. Vejo uma luz apontada em nossa direção, e quando me viro para conferir se é o ônibus, sinto sua mão sobre a minha.
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One Heart Beat
RomanceHistórias curtas para ler em "one heart beat", ou uma batida do coração.