Vogel fungou.
Pela terceira vez consecutiva, ele apertou o cobertor escuro sobre seus ombros. Seus dedos doíam e tremiam enquanto segurava a pena sobre o papel amarelado, tornando suas letras muito mais disformes do que de costume. Em todos esses anos certamente nunca tinha presenciado um inverno tão intenso, que sequer conseguia se aquecer curvando seu corpo para perto da vela que provia acima de seu texto uma fraca fonte de luz.
Não parecia o cenário ideal para escrever sobre sua vida, ele concluiu. Mas ainda assim Vogel se sentia confiante e otimista.
Não lhe restavam dúvidas que depois daquela noite as coisas seriam melhores para ele.
Jane certamente estaria orgulhosa nesse momento.
Ele iniciou o primeiro parágrafo, com um sorriso.
Vogel decidiu que não havia maneira melhor de começar aquilo, que não fosse com uma de suas lembranças mais antigas. Pelo começo do fardo que carregou durante toda sua vida.
Em especial, o dia em que descobriu a razão de ser tão diferente das outras crianças de sua idade, de ter hábitos peculiares e certos momentos que deixavam as pessoas sem reação.
Vogel pensou um pouco. Provavelmente tinha sete, talvez oito anos quando um médico o diagnosticou com TEA, mais comumente conhecido como transtorno do espectro autista.
É claro que na época ele não tinha como saber o quanto sua vida mudaria por conta disso. Mas o olhar decepcionado no rosto de seus pais foi o bastante para que percebesse que as coisas não voltariam a ser iguais, a partir desse momento.
Afinal de contas, foi nesse mesmo dia, enquanto as enfermeiras e alguns outros profissionais realizavam seus exames, que Vogel foi abandonado à própria mercê.
Ele viveu em muitos lares provisórios, depois disso. Pulando de família em família. Conforme os anos se passavam ele compreendeu que passaria sempre pelo mesmo processo. Ele seria recebido, ficaria por alguns meses, e aí seus responsáveis lhe diriam que, embora ele fosse um bom garoto, eles não poderiam cuidar de alguém como ele. O assistente social o buscaria, e então aquele ciclo tornaria a acontecer. De novo e de novo.
Talvez nem seja necessário dizer que em determinado ponto, Vogel tinha se dado conta de que não importa quanto insistisse. Que mesmo que fosse o melhor garoto do mundo, nunca haveria um lar ideal para si.
Não enquanto não houvesse ninguém além dele mesmo que o considerasse normal.
Desse modo, ele precisou aprender por conta própria a lidar com os olhares sobre si, a fingir que não via as caretas das pessoas quando passava, a ignorar os sussurros sobre seu jeito de ser. Assim como também teve que encarar um mundo onde um pré-julgamento acerca de sua condição sempre o acompanharia. Onde ele enfrentaria um desafio diário, unicamente por causa de quem era.
Bem, era difícil, mas suportável.
No fim Vogel ainda era um menino comum. E ser autista era só uma pequena parte dele. Algo que, apesar de tudo, não devia servir como uma limitação.
Foi no meio disso tudo que surgiu Jane.
Ela era uma garota brilhante. O tipo de pessoa que independente da situação é capaz de conquistar atenção com seu jeito gentil sem ao menos erguer a voz. Provavelmente era por isso que Vogel a admirava tanto.
Diferente de todos os outros, Jane nunca repeliu sua companhia, do mesmo modo que jamais se afastou de si. Nunca fez um sequer comentário sobre ele. E quando chegava a algo próximo a isso, ela só arqueava as sobrancelhas castanhas, sorria, e então dizia: "É mesmo, passarinho?"
Vogel adorava isso nela. Chegou a se perguntar várias vezes se as pessoas um dia tratariam-no com tanta gentileza quanto Jane. Se é que em algum momento realmente seriam capazes de fazer isso como ela.
Afinal, Jane ficou ao seu lado quando ninguém tentava o entender.
Jane escutou cada palavra que ele tinha a dizer, mesmo que para os outros não fosse importante.
Jane confortou o garoto ao qual o resto do mundo sempre enxergou como alguém deslocado demais para receber afeto. Um anormal.
Uma criança defeituosa.
Enquanto ele teve Jane perto de si, esses foram os dias mais felizes da vida de Vogel. Isso até ele descobrir pelos seus médicos que durante todos esses anos era o único que conseguia ver Jane.
Vogel nunca foi capaz de se lembrar do que realmente aconteceu nesse dia. Por que a partir daí foi como se um clarão branco envolvesse sua memória. Mas, contudo, havia pequenos flashes. Visões turvas em que dezenas de mãos forçavam seu corpo sobre uma maca, enquanto ele segurava uma seringa suja e grudenta. Seus protestos ecoavam nas paredes de um quarto branco. Ele se lembrava de sentir raiva.
E Havia vermelho. Muito vermelho.
Dias após isso, Vogel foi transferido para um hospital psiquiátrico. E Jane nunca mais apareceu.
A partir daí não houve uma só noite que ele não pensasse nela. Havia dias em que era difícil sair da cama, e Vogel se sentia mais pesado do que um rinoceronte. Ele percebeu com o tempo que Jane jamais foi só uma companhia. Ela era uma necessidade. Que tornava seus dias suportáveis, por mais horríveis que fossem os mesmos.
Então Vogel chegou a conclusão que, apesar de tudo, jamais conseguiria abrir mão de Jane. E que se tinha que viver ali por causa de sua condição significava não vê-la novamente... então não valia a pena.
Foi isso que ele desejou que todos compreendessem quando lessem sua pequena carta na manhã seguinte. Essa foi a razão dele mostrar com todas as letras que não enxergou outro caminho, e que, ainda assim, não estava se lamentando.
Ele quis que ficasse claro que não se perguntou se deveria voltar atrás quando tirou seus remédios da gaveta, embora existisse a possibilidade.
Que não estava infeliz no momento em que esparramou o conteúdo dos potes sobre sua escrivaninha.
E, muito menos, que quis ser digno de pena durante toda sua vida.
Vogel só estava dizendo adeus, e ele esperava que entendessem que para ele essa foi a escolha certa a se fazer.
Ele suspirou. Em um lampejo de esperança, se virou para fitar o canto do quarto, onde uma silhueta familiar o observava com olhos gentis.
Jane estendeu a mão para ele.
"Hora de ir, passarinho."
Vogel sorriu. Seu olhar percorreu os comprimidos na mesa, e então, com um único movimento, ele apagou a vela em sua frente.
FIM.