Posfácio

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 No meio do gramado onde almoça Mary Beton passa um gato sem rabo. O animal defeituoso deixa cair uma sombra sobre uma tarde até então luminosa. "Pobre animal, sem rabo no meio do gramado. Teria ele nascido assim ou perdera o rabo em um acidente? O gato sem rabo, embora se afirme que habite a ilha de Man, é mais raro do que se imagina. É estranha a diferença que um rabo faz."

Ao receber a encomenda de proferir uma palestra sobre o tema mulheres e ficção no Newnham College e no Girton College, duas faculdades frequentadas por mulheres dentro da Universidade de Cambridge, em 1928, Virginia Woolf escolhe um caminho tortuoso. Não fala sobre ficção feminina, nem sobre o papel da mulher nos livros de ficção, nem exatamente traça uma história da mulher na ficção (embora acabe fazendo um panorama cronológico desse assunto), mas, após longas digressões, decide endossar uma profissão de fé: do que precisa uma mulher para escrever ficção? Nada além de quinhentas libras por ano e de um teto todo seu.

Sua abordagem não é propriamente estilística, teórica ou mesmo literária. É basicamente pragmática. Para escrever ficção, uma mulher precisa de dinheiro e de espaço não mais do que suficientes para si. E por quê? Para resumir em breves palavras um longo ensaio ficcional de pouco mais de cem páginas, porque a mulher que escreve ficção é um gato sem rabo.

A balada em que Virginia Woolf se inspirou para criar a personagem (alter ego, pseudônimo, heterônimo) Mary Seton, a mulher que ao longo de um dia pensa sobre o tema mulheres e a ficção, é "Mary Hamilton", do folclore escocês. Mary Hamilton, supostamente, é dama de companhia de uma rainha. Acontece que a criada engravida do rei. Ciente do perigo que corre, ela mata o bebê assim que ele nasce. Flagrada em delito, é condenada à morte. Seu nome, na balada, é Mary Hamilton, mas poderia ser Mary Beton, Mary Seton ou Mary Carmichael. Ou Virginia Woolf. Ou Maria da Silva.

As mulheres, para Woolf – mesmo as que não escrevem ficção –, são punidas pelo sacrifício que são obrigadas a fazer. Ao menos até o início do século XX, na Inglaterra, quando elas já tinham conquistado o direito de voto (a principal reivindicação das feministas até então, quando se chegou a confundir as palavras "feminismo" e "sufragismo") e podiam trabalhar e ter bens próprios.

Mary Seton, a personagem encarnada por Woolf para viver empiricamente o drama de ter de falar sobre mulheres e ficção, vive numa era de muita evolução, ao menos em relação aos séculos cujas mulheres ela relembra, desde o XVI, época de Shakespeare, até o XIX, século de George Eliot (pseudônimo de Mary Ann Evans), entre outras. Mesmo assim, a própria Mary é repreendida por um bedel da universidade em que passeia, por ocupar um gramado em que só homens podem pisar. "O cascalho era o meu lugar." Em seguida, ao tentar, distraidamente, adentrar a biblioteca para conduzir suas pesquisas sobre mulheres escritoras, ela é novamente barrada por outro bedel, que lhe relembra a obviedade da interdição de mulheres naquela biblioteca. Mary aceita a evidência. Continua a caminhada, almoça fartamente com os homens da universidade – e é nesse momento que ela observa o gato sem rabo, que passa (como tudo passa) – e, mais tarde, janta com mulheres. Em comparação à refeição masculina, farta e requintada, a das mulheres é apenas trivial e satisfatória.

Mary Seton põe-se a refletir sobre a diferença das refeições: "[...] esta faculdade dentro da qual estávamos sentadas, o que jazia sob seus nobres tijolos vermelhos e os gramados selvagens e desleixados do jardim? Que força estaria por trás do conjunto de pratos lisos nos quais jantamos, e (escapou da minha boca antes que eu pudesse evitar) do bife, do creme inglês e das ameixas?". Pois, para ela, "o brilho no meio da espinha não se acende com bife e ameixas". As ameixas, ao final de um dia de trabalho, gerariam um estado de espírito equívoco e limitado.

A resposta que o próprio ensaio oferece para as perguntas acima, para quem estaria por trás do lauto repasto masculino e da equívoca refeição feminina é, sem dúvida e novamente: o gato sem rabo. Abaixo dos nobres tijolos vermelhos, dos selvagens e desleixados gramados, e por trás dos pratos lisos estão: mulheres, mulheres, mulheres – e também operários e estrangeiros (mas, dentre estes, principalmente as mulheres). Mulheres necessariamente pobres, desfalcadas de espaço, tempo e linguagem, ao longo de séculos de aquisição de riqueza, conhecimento e poder por parte dos homens.

Um teto todo seu (1929)Onde histórias criam vida. Descubra agora