Diário

22 1 2
                                    

 Virginia Woolf não dava folga à pena. Quando não estava ocupada com os ensaios, os contos e os romances que revelaram a maestria de sua palavra, ela se colocava a escrever em seu diário, hábito que lhe permitiu acumular numerosos registros cotidianos e contribuiu para revelar a originalidade de sua linguagem e a manifestação veemente de seu pensamento.

Nos trechos selecionados nesta edição, Woolf delibera livremente sobre o significado e os efeitos de sua escrita, e o destino de seu diário após a própria morte, aventando a possibilidade de publicação em formato de livro, previsão que se revelou acertada. Perpassando pelo processo de escrita de Orlando, Mrs. Dalloway, As ondas e Os anos, Woolf trata também da palestra e posterior ensaio "As mulheres e a ficção", que daria origem a este livro e que difundiu uma ideia revolucionária – para uma escritora, é essencial ter um teto todo seu, um ambiente de liberdade pessoal que lhe permita exprimir-se sem sujeição.

Domingo de Páscoa, 20 de abril de 1919

No ócio que se segue a qualquer artigo extenso, e Defoe foi o segundo a me levar por esse caminho este mês, apanhei este diário e o li, como qualquer pessoa leria a própria escrita, com uma intensidade culposa. Confesso que o estilo rude e randômico, por vezes tão antigramatical e implorando por uma mudança de palavras, me afligia de certo modo. Estou tentando dizer a seja lá que parte de mim lerá este escrito que consigo escrever muito melhor e que não perca tempo com isso; e quero proibi-la de deixar que a vista do homem recaia sobre isto. E por ora posso acrescentar um ligeiro elogio no sentido de que isso tem pressa e vigor, e de vez em quando acerta um alvo inesperado. Mas o que mais importa é minha crença de que o hábito de escrever dessa forma, apenas para os meus olhos, é bom para praticar. Ele afrouxa as amarras, não importam as falhas e os tropeços. Caminhando no ritmo em que estou, devo fazer as tentativas mais diretas e instantâneas em direção ao meu objetivo, e assim devo colocar as mãos nas palavras, escolhê-las e dispará-las sem pausas mais longas do que as necessárias para molhar minha pena na tinta. Acredito que durante o último ano tenho conseguido identificar uma naturalidade crescente na minha escrita profissional, que atribuo às eventuais meias horas depois do chá. Além do mais, assoma diante de mim o vulto de uma forma qualquer à qual um diário deve chegar. Posso, no decorrer do tempo, descobrir o que pode ser feito dessa matéria vital vaga e errática; encontrar outro uso para isso além do uso que lhe destino, tão mais consciente e cheio de escrúpulos, na ficção. Que tipo de diário eu gostaria que fosse o meu? Algo solto, mas não desleixado, tão flexível que abraçará qualquer coisa solene, insignificante ou bela que me venha à mente. Gostaria que ele lembrasse aquelas grandes escrivaninhas antigas ou uma grande sacola, na qual é possível atirar um amontoado de bugigangas sem precisar examiná-las. Gostaria de revisitá-lo após um ano ou dois e descobrir que a coleção se arrumou sozinha, se refinou sozinha e amalgamou-se, como esse tipo de sedimento costuma misteriosamente fazer, em um terreno transparente o suficiente para refletir a luz da nossa vida, mas ainda assim um composto firme e tranquilo com o desinteresse de uma obra de arte. O principal requisito, penso eu ao reler meus volumes antigos, não é desempenhar o papel de censor, mas escrever conforme dita o humor e sobre qualquer coisa; desde então, estava curiosa para descobrir como eu lidaria com as coisas escritas a esmo, e descobri significados onde nunca antes percebera. Mas algo solto rapidamente se transforma em desleixo. É preciso o mínimo esforço para encarar um personagem ou um acontecimento que deve ser registrado. Tampouco se pode permitir que a pena escreva sem diretrizes, sob o risco de se tornar descuidado e desmazelado como Vernon Lee. As amarras dela são muito frouxas para o meu gosto.

Sexta-feira, 17 de agosto de 1923

O assunto que desejo debater aqui é a questão dos meus ensaios, e de como transformá-los em um livro. Ocorreu-me a ideia brilhante de incluí-los em uma conversa à la Otway. A maior vantagem seria poder comentar e acrescentar o que quer que eu tenha deixado de fora, ou que eu tenha me esquecido de incluir, por exemplo, aquele sobre George Eliot com certeza necessita de um epílogo. E mais, ter um cenário para cada um "daria um livro", e uma série de artigos, na minha opinião, é um método não artístico. Mas, por outro lado, isso também pode ser muito artístico; é capaz de me absorver, de levar um tempo. Não obstante, vou gostar muito disso tudo. Devo resvalar para mais perto de minha própria individualidade. Devo mitigar a pompa e varrer para longe todo tipo de pequenez. Com isso, acho que ficaria mais tranquila. Então, acho que devo fazer uma tentativa. A primeira coisa a fazer é aprontar um certo número de ensaios. Pode haver um capítulo introdutório. Uma família que lê os artigos. A coisa a fazer seria envelopar cada ensaio em sua própria atmosfera. Colocá-los em uma corrente de vida, e então moldar o livro; dar ênfase a alguma linha central – mas qual será essa linha, só saberei ao ler todos eles até o fim. Sem dúvida, a ficção é o tema principal. De qualquer forma, o livro deve terminar com literatura moderna.

Um teto todo seu (1929)Onde histórias criam vida. Descubra agora