~ II ~ Todas as formas do mal.

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Raramente o mal se mostra de imediato. A princípio, é pouco mais que um sussurro. Um olhar. Uma traição. Mas logo cresce e cria raízes, mesmo que imperceptível, despercebido. Só os contos de fadas dão uma forma adequada ao mal. Os lobos maus, os vilões, os demônios, o diabo...

Ofélia sabia que o homem que logo teria que chamar de “pai” era mau. Ele tinha o mesmo sorriso do ciclope Ojáncanu, e a crueldade do Cuegle e do Nuberu — monstros que ela conhecia dos contos de fadas — se aninhava em seus olhos sombrios. Mas a mãe da menina não enxergava o mal em sua verdadeira forma. Em geral, as pessoas perdem essa capacidade quando
envelhecem, e talvez Carmen Cardoso não tivesse notado seu sorriso de lobo porque o Capitão Vidal era bonito e estava sempre impecavelmente vestido com seu uniforme de gala, botas e luvas. Por ansiar tanto pela proteção dele, talvez a mãe tenha confundido a fúria sanguinária com autoridade, e a brutalidade com força.


* * *


O Capitão Vidal conferiu as horas em seu relógio de bolso. O vidro estava rachado, mas os ponteiros ainda contavam o tempo e indicavam que a caravana estava atrasada.

— Quinze minutos — resmungou Vidal, que, como todos os monstros, especialmente a Morte, sempre é pontual.


* * *


Sim, estavam atrasados, como Carmen temera, quando finalmente chegaram ao velho moinho que Vidal elegera como quartel-general. Ele odiava a floresta. Odiava tudo que não estava propriamente em ordem, e as árvores se ofereciam para camuflar aqueles que o capitão queria capturar, homens que
combatiam a escuridão profunda a que ele servia e a qual admirava. Por isso Vidal se instalara naquela floresta antiga, para acabar com eles. Isso mesmo, o novo pai de Ofélia adorava destruir aqueles que considerava fracos, derramar seu sangue, no intuito de instaurar uma nova ordem naquele mundo caótico e miserável.

Ele cumprimentou a caravana. Sorrindo. Mas Ofélia viu o desprezo em seus olhos quando ele os recebeu no pátio empoeirado onde no passado os camponeses dos povoados vizinhos entregavam grãos para o moleiro. A mãe, no entanto, sorriu e deixou que o Lobo acariciasse a barriga avolumada pelo bebê de quem era o pai. Ela até cedeu quando o homem pediu que se sentasse numa cadeira de rodas, como se fosse uma boneca estropiada.

Ofélia assistiu a tudo isso do banco de trás do carro, desprezando a possibilidade de estender a mão ao Lobo, como a mãe lhe pedira para fazer. Então finalmente saiu do carro para não deixar a
mãe sozinha com ele, apertando os livros junto ao peito feito um escudo de papel e palavras.

— Ofélia — disse o Lobo, triturando seu nome entre os lábios finos como se já fosse algo tão desmantelado quanto a mãe dela, e encarou a mão esquerda estendida. — É a outra mão, Ofélia — disse, com delicadeza. —Lembre-se disso.

Ele usava luvas pretas de couro que rangeram quando apertou a mão de Ofélia com a pegada cativa e violenta da armadilha de um caçador. Então lhe deu as costas, como se já a tivesse esquecido.

— Mercedes! — gritou ele para a mulher que ajudava os soldados a descarregar os carros. — Pegue as malas delas!

Mercedes era magra e pálida. Cabelo preto de graúna e olhos igualmente
pretos, fluidos. Ofélia achou que ela parecia uma princesa disfarçada de filha
de camponês. Ou talvez uma feiticeira, embora não soubesse ao certo se era
boa ou má.

Mercedes e os homens levaram as malas de sua mãe para a casa do moinho. Ofélia achou a aparência do lugar triste e desoladora, como se faltasse um moinho processando grãos frescos. Em vez disso, continha uma
infestação de soldados que se amontoavam feito gafanhotos ao redor das paredes de pedra ressecada. Seus caminhões e tendas espalhados por todaparte ocupavam o pátio amplo rodeado de estábulos, o celeiro e o próprio moinho.
Uniformes cinza, uma casa triste e velha, e uma floresta cheia de sombras... Ofélia queria tanto voltar para casa que mal conseguia respirar.
Mas não existia lar sem seu pai. Ela sentia as lágrimas se insinuarem quando de repente notou, entre as sacas amontoadas a poucos passos dali, asas captando a luz do sol como se fossem feitas de um papel delicado como vidro.

Era a Fada.

Já esquecendo sua tristeza, Ofélia correu atrás da pequena criatura, que voou na mesma hora até as árvores logo atrás do moinho. Era tão ágil que Ofélia tropeçou nos próprios pés enquanto a perseguia, deixando todos os livros caírem no chão. Mas enquanto a menina os recolhia e espanava a poeira das capas, encontrou a Fada pendurada na casca de uma árvore próxima, esperando por ela.


* * *


Isso mesmo. Lá estava ela. Tinha que fazer com que a garota a seguisse. Mas espera aí. Não! Ela diminuiu o passo novamente.


* * *


Ofélia olhava para o arco gigantesco que tinha aparecido entre as árvores e atravessava o espaço entre duas paredes antigas. Uma cabeça chifruda observava do arco com olhos vazios e a boca aberta, como se tentasse engolir o mundo. Aquele olhar sumia com tudo ao redor: o moinho, os soldados, o Lobo, até a mãe de Ofélia.

Entre! Pareciam dizer as paredes despedaçadas.

Ofélia viu as letras entalhadas e esmaecidas logo abaixo daquela cabeça, mas não sabia o significado.
Ela leu as palavras: In consiliis nostris fatum nostrum est.

“Em nossas escolhas encontra-se o nosso destino.”

A Fada tinha desaparecido e, ao atravessar o arco, Ofélia sentiu um vulto frio em sua pele. Meia-volta! Algo dentro dela avisou. Mas ela não obedeceu.

Às vezes é bom dar ouvido aos sinais, outras vezes, não. De todo modo, Ofélia não sabia se tinha escolha. Seus pés caminharam sozinhos. O corredor que se abriu atrás do arco se estreitou depois de poucos passos, e logo Ofélia já tocava as paredes laterais apenas esticando os braços. Passava as mãos nas
pedras desgastadas enquanto andava. Apesar do calor do dia, estavam muito
geladas.

Deu mais alguns passos e chegou à quina de uma parede. Outro corredor se abriu a sua frente, levando à esquerda e depois à direita, em direção a outra quina.

— É um labirinto.

Ofélia se virou. Mercedes estava de pé atrás dela. O xale que cobria seus ombros parecia feito de folhas de lã. Se a mulher era uma feiticeira, era uma feiticeira linda, nem um pouco velha e enrugada como as que apareciam nos livros de Ofélia.

Mas a menina aprendera com os contos de fadas que muitas vezes as feiticeiras não mostravam sua aparência verdadeira.

— É só uma pilha de pedras velhas — disse Mercedes. — Ancestrais. Mais velhas que o moinho. Essas paredes existem desde sempre, antes mesmo de construírem o moinho. Você não deveria entrar aqui. Pode acabar
se perdendo. Já aconteceu uma vez. Um dia posso lhe contar a história, se quiser.

— Mercedes! O capitán está te chamando! — solicitou a voz áspera de um soldado atrás do moinho.

— Já vou! — respondeu ela. E sorriu para Ofélia. Havia segredos naquele sorriso, mas a menina gostou dela. Gostou muito dela. — Você ouviu. Seu pai está me chamando — disse Mercedes, e deu meia-volta para passar pelo arco.

— Ele não é meu pai! — respondeu Ofélia. — Não mesmo!

Mercedes diminuiu o passo.
Ofélia correu para perto dela, e atravessaram juntas o arco, deixando para trás as pedras geladas e a cabeça chifruda de olhos vazios.

— Meu pai era um alfaiate — disse Ofélia. — Ele morreu na guerra. —As lágrimas voltaram. Sempre brotavam quando ela falava do pai. Era inevitável. — Ele fez meu vestido e a blusa que minha mãe está usando. Ele fazia roupas lindas. Mais bonitas do que as roupas que as princesas usam nos livros! O Capitão Vidal não é meu pai.

— Você já deixou isso bem claro — disse Mercedes, com gentileza, passando o braço sobre os ombros de Ofélia. — Mas venha, vou levar você até sua mãe. Tenho certeza de que ela está procurando você.
O braço de Mercedes era caloroso. E forte.— Minha mãe não é linda? — perguntou Ofélia. — É o bebê que a deixa
mal. Você tem irmão?
— Tenho — disse Mercedes. — Você vai ver como vai amar seu
irmãozinho também. Muito mesmo. Não tem opção.
Ela sorriu mais uma vez. Havia tristeza em seu olhar, Ofélia percebeu.
Mercedes também parecia saber muito sobre perdas.
Sentada no arco de pedra, a Fada observou ambas irem para o moinho: a
mulher e a menina, primavera e verão, lado a lado.
A garota ia voltar.
A Fada ia cuidar disso.
Muito em breve.
Assim que seu mestre desejasse.

𝐿𝑎𝑏𝑖𝑟𝑖𝑛𝑡𝑜 𝑑𝑜 𝐹𝑎𝑢𝑛𝑜.Onde histórias criam vida. Descubra agora