A Nevasca

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Sempre achei que histórias sobre nevascas não passassem de hipérboles

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Sempre achei que histórias sobre nevascas não passassem de hipérboles. Agora, com as canelas afundadas na neve e a pele congelando por debaixo do casaco de lã, começo a questioná-las. Teria o taxista ficado preso na toca de um iéti? Havia rido de sua cara, mas enquanto me arrasto pela estrada, pego-me olhando para as árvores esguias e pontudas, encarando o espaço entre elas em busca de qualquer monstro que possa querer me usar como petisco. Talvez Lisa esteja pensando o mesmo, pois quando a encaro, percebo o fantasma de um sorriso dançando em seu rosto.

— O que foi? — pergunto. Ela balança a cabeça e ajeita o gorro, cuidando para mantê-lo sobre as orelhas.

— Devíamos ter pego um atalho — lembra. A neve lhe cobre os joelhos e seu rosto redondo está vermelho como um tomate. 

Eu me mexo desconfortável, coçando a nuca com a mão antes de desviar a atenção. Estamos perto de uma cidadezinha. Não é a cidadezinha, mas talvez conseguíssemos um mecânico decente.

— Eu sinto muito — estou cansado, molhado e congelando. Meus dentes batem e cristais de gelo começam a se acumular em meus cílios, mas eu mereço isso, Lisa não. — Você deveria estar com a sua família agora.

Ela me estuda com os olhos e sorri. De certa forma, sinto como se o gesto derretesse a neve ao meu redor. 

Está anoitecendo. É o primeiro Natal que passamos juntos e, mesmo com os avisos constantes nos noticiários, a convenci a sair de casa. Estávamos na estrada, a caminho da casa de seus pais, quando a tempestade nos alcançou, quebrando o carro e atolando-o de tal modo que nem o tal iéti conseguiria livrá-lo. 

Deixo escapar um suspiro e chuto a neve, abrindo espaço até o acostamento. Não andamos nem por um quilômetro. As casas pequenas de madeira surgem logo abaixo da encosta, parecendo feitas de brinquedo. As longas chaminés soltam baforadas de fumaça, formando anéis perfeitos que flutuam e se dispersam no ar em nuvens acinzentadas. 

Não há muitos habitantes nas ruas. De cima, consigo ver um senhor tentando enfiar uma árvore de natal no banco traseiro do carro. Um trio agasalhado canta em frente a uma capela e uma mulher se estica para prender pisca-piscas em sua varanda. Sem que eu perceba, Lisa se aproxima.

— Eu estou — diz envolvendo meu braço com o dela. Ergo uma sobrancelha, confuso, e ela revira os olhos cor-de-amêndoa.

— O quê? — começamos a caminhar, tropeçando a cada passo desajeitado na neve. 

— Você me disse que deveria estar com minha família. Eu estou, idiota. Você é a minha família — Fico por alguns instantes parado, admirado, observando-a inspirar e expirar; o ar quente se condensando no frio da noite. Estamos tão próximos que nossos narizes quase se tocam. De repente, onde estou é irrelevante. Poderia estar no alto do Everest. Se Lisa também estivesse, dariamos um jeito. 

— Você é a minha família — repito, encostando meus lábios congelados nos dela.

Suéteres, Biscoitos e Contos [COMPLETO]Onde histórias criam vida. Descubra agora