00 ┊prólogo

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00. PRÓLOGO
( coração perverso. )
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Old Ashton, Austrália.

AQUELA NÃO ERA UMA noite serena.

A chuva torrencial e tempestuosa findava os acontecimentos precedentes desta história, enquanto relâmpagos furiosos cortavam o céu e uivos chorosos da ventania ainda balançavam galhos desnudos.

Acima do cenário gris, uma figura suja e malvestida se espreitava pelo muro da grandiosa mansão, suas roupas quase tão sombrias quanto seu estado de espírito. As botas enlameadas e encharcadas dificultavam cada vez mais sua escalada, e ele escorregou uma ou duas vezes antes de mergulhar vigorosamente pela janela ainda aberta da residência de estilo vitoriano.

A tapeçaria do corredor pelo qual entrara era cara e ostentava toda a sua riqueza e magnitude, em completo contraste com o estado deplorável do homem. Suas pegadas marcaram o tapete importado como um fazendeiro marca seus animais para o abate, e ao vê-las, ele teve ainda mais certeza que jamais pertenceria aquele ambiente.

Enquanto suas botas faziam um barulho engraçado sobre o piso de madeira, ele rezou sua última oração. Pediu aos céus para que ela não o odiasse, para que tudo aquilo não passasse de um mal entendido. Pediu que ele ainda pudesse amá-la e que ela jamais o tivesse enganado.

Infelizmente, suas preces não eram atendidas há um bom tempo.

Quando girou a maçaneta do quarto infantil, o ambiente se infestou com o cheiro de perfume caro e talco. O silêncio mórbido era um aviso claro que ele não deveria estar ali, mesmo assim, adentrou o espaço. A silhueta feminina, então, pulou sobressaltada de sua cama, levantando-se meio desajeitada e temerosa, os olhos esbugalhados e a respiração acelerada marcavam suas belas feições.

— Você não devia estar aqui. — Sussurrou muito baixo, mesmo que estivessem sozinhos.

— Eu sei.

A criança recém-nascida no colo da mulher dormia um sono profundo e calmo, alheia a enxurrada de sentimentos e tensão presente no quarto. Quando Graham a olhou, a mulher agarrou-a ainda mais forte.

— Por favor, vai embora. Vão te matar se o virem aqui.

— Não finja que se importa, já passamos disso. — Seu foco gravitava entre o bebê e a mulher, um milhão de pensamentos o assombravam. — Eu só quero saber o porquê, Carina. Só isso.

— Não vou te responder. E, se não for embora agora, vou chamar ajuda.

— Chame. Não vou embora até ter minha resposta.

— Fale baixo. — Sussurrou novamente, apontando com o queixo para o pequeno ser em seus colo.

Graham, no entanto, apenas cruzou os braços sobre o amplo peito, encostando-se na porta com uma feição séria que assustaria o mais corajoso dos homens. Porém, Carina não era um homem, e, certamente, não era medrosa. Tudo que ela deixou transparecer foi um suspiro cansado, e seu olhar típico, um misto de arrogância e compaixão, tomou o lugar da antiga face sobressaltada.

Graham observava os movimentos da mulher com atenção, e se perguntava a veracidade de cada um deles. Sabia que, para ela, a mentira se tornara algo tão natural quanto respirar. E, mesmo assim, talvez porque ainda a amasse, esperava alguma honestidade de sua parte.

— Eu não vou discutir com você, Graham. — A cara aliança de casamento reluzia no dedo médio enquanto acariciava as costas da criança sonolenta. Certamente, era melhor que qualquer coisa que ele poderia ter dado a ela. — Você perdeu, sua luta acabou. Aceite. Vá embora antes que eu mude de ideia e ligue para alguém agora mesmo.

— Por quê, Carina?

Sua carranca se aprofundou ainda mais e a mulher riu em escárnio.

— Quer mesmo saber? Fiz porque eu precisei. Porque você é doce demais pra entender como funcionam as coisas no mundo real. Fiz porque era fácil.

— Então, — Fez uma pausa, engolindo em seco. Sua visão de mundo distorcida o assustava. — tudo foi uma mentira? Tudo que vivemos, foi só um pretexto pra você conseguir o que desejava?

Ele não queria acreditar naquilo, doía demais. Gostaria de pensar que ela o amara. Pelo menos, por um breve instante. Se o tivesse feito, então lutaria. Lutaria pelo sentimento que, embora estivesse tentado afogar, ainda nadava escondido em seu peito. Assim, todo sangue derramado, tudo que ele perdera no processo, não teria sido completamente em vão.

Contudo, assim que ela o olhou, soube a resposta.

— Sinto muito, Graham. Eu jamais amaria uma besta como você.

CORAÇÃO PERVERSOOnde histórias criam vida. Descubra agora